Numa tarde de sexta-feira em maio, Cyndi Lauper saiu de seu apartamento no Upper West Side para as ruas da cidade de Nova York. Usava óculos incrustados de glitter, tênis com solas de arco-íris e um monte de pulseiras de contas em cada braço. Levava uma sombrinha de papel de arroz nas mãos. Enquanto caminhava, observava as multidões e fazia um comentário quando alguma coisa chamava sua atenção.
“É claro que aqui é o inferno da moda”, disse ela sobre seu bairro nobre. Mesmo assim, a cada poucos quarteirões, ela virava o pescoço para o visual de alguma mulher, com seu famoso sotaque nova-iorquino vibrando de prazer com o que via:
“Olhe só essas moças, que lindas!”
“O que você achou daquela calça? Eu meio que adorei.”
“Olhe só esta senhora”, disse ela, dando passagem para uma transeunte. A mulher se movia com muita agilidade e uma mecha vermelho-tomate no cabelo prateado, o corpo coberto de tons de fúcsia e cereja, empurrando a reluzente estrutura metálica de um andador. “Fabulosa”, exclamou Lauper. “Arrasou!”
Aos 70 anos, o ícone pop e ativista da justiça social está de volta, definitivamente. Em 3 de junho, Lauper anunciou sua última turnê, a Girls Just Wanna Have Fun Farewell Tour, que a levará a arenas de toda a América do Norte do final de outubro ao início de dezembro. E Let the Canary Sing, um documentário sobre sua vida e carreira que estreou no Festival de Tribeca no ano passado, está disponível no Paramount+ e será exibido na programação do festival In-Edit, em São Paulo, no dia 14 (às 20h30, na na Cinemateca Brasileira), dia 20 (às 18h, no CineSesc) e no dia 22 (às 18h, no Spcine Olido).
Lauper não faz uma grande turnê – “agora é uma turnê de verdade”, garante ela – há mais de uma década. Mas a janela de oportunidade está se fechando, então ela resolveu aproveitar. “Não acho que vou conseguir me apresentar da maneira como quero daqui a alguns anos”, disse ela. “Quero estar forte.”
E até recentemente, quando enfim concordou em conversar com a diretora Alison Ellwood, ela não conseguia imaginar a possibilidade de transformar sua história de vida em filme. “Não queria fazer um documentário porque não estou morta”, explica. Mais que isso, ela não se sentia particularmente incompreendida. Desde o momento em que saiu dançando pela cidade no clipe de Girls Just Want to Have Fun, em 1983, ela sentiu que tinha expressado exatamente o que queria dizer.
“Tudo o que eu queria que as pessoas entendessem estava naquele vídeo”, disse ela. E muita gente entendeu: o clipe foi visto mais de 1 bilhão de vezes no YouTube. Quarenta anos depois, ela o considera uma tese, uma chave para decifrar sua perspectiva artística e compreender tudo o que veio depois. Afinal de contas, “você nunca precisa perguntar qual é a posição de um nova-iorquina”, disse ela. “Eles dizem para você, logo de cara.”
Nasce uma artista
Cyndi Lauper nasceu no Brooklyn e foi criada no Queens. Dançava pela casa ao som dos Beatles, com a irmã mais velha, Elen, cantando as partes de Paul McCartney e Lauper fazendo as partes de John Lennon. Foi sua primeira lição sobre harmonia e estrutura de canções. Mas quando ela saiu de casa, aos 17 anos, o que levou nas mãos foi uma cópia de Grapefruit, livro de arte conceitual feminista de Yoko Ono.
Ono ensinou a ela que “você pode criar arte na sua cabeça e aí começar a ver as coisas de um jeito diferente”, disse Lauper. Essa atitude foi bem útil durante todo o tempo em que ela tentou (e muitas vezes fracassou) trabalhar como pintora, vendedora de sapatos, tratadora de cavalos, garçonete do IHOP, assistente na Simon & Schuster e cantora numa banda cover.
Cantando músicas de outras pessoas em bares e boates de Long Island, Lauper teve dificuldade para encontrar seu lugar. Ela tentou imitar Janis Joplin, mas “eu ficava presa dentro do corpo dela, e ela não gostava, e eu não gostava”, disse. Ela também tentou cantar como Gene Pitney, mas “acabava soando como Ethel Merman.” Depois de um tempo, “você começa a sentir que não é boa o suficiente.”
Mas, na verdade, ela só não era boa em ser outra pessoa que não Cyndi Lauper. Quando começou a compor e fazer arranjos para si mesma, “contei as histórias que conhecia sobre as mulheres que conhecia”, disse ela. “Sobre minha mãe, minha tia, minha avó.” Elas a guiaram de volta aos ritmos de sua vida, ainda que, no início, pouca gente estivesse interessada em ouvir. “Meu primeiro show foi para catorze pessoas”, disse ela, “mas mesmo assim pediram bis, ok?”
O título do documentário é uma frase retirada de um drama de tribunal da vida real: no começo, a carreira de Lauper se envolveu nas ambições de um ex-empresário, que a processou para manter o controle sobre as músicas dela. Lauper afundou na falência tentando se livrar dele. Quando o juiz ficou do lado de Lauper, bateu o martelo e disse: “Let the canary sing”, ou seja, “Deixe o canário cantar.”
Uma garota que só queria se divertir
Uma vez libertada, Lauper se conectou com Robert Hazard, autor de uma faixa chamada ‘Girls Just Want to Have Fun’. Ele tinha feito um arranjo de rock, do ponto de vista de um homem: eram as garotas com quem ele sonhava transar. Lauper fez algumas edições e a reformulou como uma alegre proclamação pública, denunciando as distorções do sexismo (“Oh, querida mãe, a sorte não está do nosso lado”) enquanto reivindicava a libertação do trabalho, do lar e do patriarcado. Ela também reorganizou as notas, elevando a voz tão alto que não podia mais ser ignorada. “Cantei bem alto porque estava anunciando uma ideia”, disse ela.
E aí veio o vídeo. “Aquele clipe era o que nos dias de hoje nós chamaríamos de ‘inclusivo’, e isso foi o mais importante”, disse Lauper. Além do lutador profissional ítalo-americano Lou Albano, Lauper contou com sua mãe, seu advogado, sua empresária, uma série de secretárias de gravadoras e um grupo racialmente diversificado de cantoras e dançarinas. “Eu estava cansada da segregação” da indústria musical, disse ela. “As pessoas juntas é que criam um estilo.”
A MTV ainda estava na infância em 1983, e foi por acaso que o álbum de estreia de Lauper, She’s So Unusual, foi lançado no momento em que a rede estava ascendendo. Ela via sua imagem pública como uma forma de arte visual. Sua maquiadora era pintora, e sua estilista era uma negociante de artigos vintage.
“As pessoas às vezes têm a ideia errada de que tudo era meio jogado”, disse Laura Wills, fundadora da loja vintage Screaming Mimi’s, sobre o estilo da cantora. “As pessoas simplesmente não eram assim.” No início dos anos 80, Lauper trabalhava para Wills, muitas vezes em troca de roupas. Quando sua carreira decolou, Wills começou cuidar do estilo dela, e as duas muitas vezes elaboravam os looks de Lauper como se estivessem jogando fichas numa mesa de pôquer: “Quero ver suas meias de bolinha e sua calça capri listrada, e ainda vou apostar num top xadrez”, disse Wills. “Quero ver suas meias de bolinha, sua calça capri listrada, sua blusa xadrez e, além disso, vou criar um chapéu estampado para você.”
Um ícone feminista
Lauper parece ter alcançado a fama como um ícone feminista totalmente pronto. Ela se recusava a dizer a idade aos entrevistadores (“Não sou um carro”, dizia ela) e insistia que eles reconhecessem a política por trás de suas escolhas estéticas. “Uso espartilho para desfazer o poder das amarras sobre as mulheres”, disse ela à imprensa. Ela apareceu na capa da revista Ms. e gravou True Colors, em 1986, porque ficou comovida com a canção após a morte de um amigo por AIDS.
“Eu sei que provavelmente perdi oportunidades porque falei muito sobre AIDS”, disse ela, mas, “como qualquer boa italiana, eu tinha que tomar posição e defender minha família, sabe?.” Em 2008, ela fundou a True Colors United para ajudar a combater a falta de moradia entre jovens LGBTQ+. E, em 2022, criou o fundo Girls Just Want to Have Fundamental Rights para apoiar o acesso ao aborto e outros movimentos de justiça reprodutiva.
Em 1985, Lauper ganhou o Grammy de melhor artista revelação após o lançamento de She’s So Unusual. O álbum – e músicas como Time After Time e All Through the Night – quebrou recordes. Mas estava acontecendo uma coisa estranha. Ela olhava em volta e via versões de si mesma por toda parte.
“Quando fiquei famosa, senti que o mundo inteiro simplesmente tinha chegado lá” – aqui Lauper fez um barulho agudo de sucção – “e engolido tudo. As joias, as cores, os espartilhos por fora, tudo. Eu tinha sido engolida e cuspida. Próxima!”
Lauper foi acusada de ser um produto fabricado. “Não, era eu mesma. Era assim que eu me vestia. Era o meu visual. Era a minha comunidade”, disse ela. “Eu tenho cérebro.”
Quando Lauper recebeu uma ligação informando que um estúdio de cinema estava adaptando seu grande sucesso para as telas, ela recusou a premissa fofa do filme. “Acho que era sobre umas garotas... tentando se divertir”, disse ela. (Sarah Jessica Parker e Helen Hunt estrelaram o longa.) Lauper não deu permissão para usarem sua música, então o filme apresentou a versão de Hazard com outras vocalistas. “Para mim, era uma porcaria”, disse ela. “Pegaram meu estilo. Mas não tinha nada a ver comigo.”
Comparações com Madonna
Nos anos 80, Lauper era tão comparada a outras estrelas da música que ficou implícito que não havia espaço para todas elas. Ela era confrontada com outras mulheres – principalmente Madonna, que lançou seu álbum de estreia no mesmo ano. Nos programas de bate-papo e nos pátios das escolas (e até mesmo no single beneficente We Are the World), fãs e celebridades eram impelidos a escolher uma delas. “Tentavam comparar coisas que não tinham nada a ver”, disse Lauper. Ou, como ela disse à revista Newsweek em 1985: “Ela está fazendo as coisas dela. As minhas coisas são diferentes.” Era uma pena, Lauper disse: “Eu queria muito ter uma amiga.”
Embora tenha travado suas batalhas quase sempre sozinha, Lauper inspirou gerações de mulheres. Entre suas seguidoras está Nicki Minaj, que em abril a levou ao palco no Brooklyn para fazer dueto em Pink Friday Girls, música que traz samples de Lauper. Quando um entrevistador perguntou à cantora e compositora Chappell Roan, de 26 anos, “Qual é a sensação de ser chamada de Cyndi Lauper da Geração Z?”, ela respondeu: “Acho que Cyndi Lauper é a Cyndi Lauper da Geração Z.”
Lauper gravou mais onze álbuns após sua estreia – entre eles um disco de blues, um disco country e um disco dance. No início dos anos 2000, foi à Broadway para estrelar The Threepenny Opera e compor as músicas e letras do musical Kinky Boots quando o autor Harvey Fierstein a convocou para o espetáculo.
Lauper ganhou o Tony de melhor trilha sonora. Foi a primeira mulher a vencer sozinha.
Numa indústria que exige a busca voraz do novo e a exploração cínica da identidade, Lauper nunca esteve disposta a se abandonar. Ela forjou um estilo revolucionário, cantou a canção totêmica. Inspirou milhões, bilhões de pessoas a serem elas mesmas. Por que ela deveria mudar?
A preparação para a turnê de despedida
Cruzando o Upper West Side, Lauper e eu entramos numa exposição sobre a artista abstrata Sonia Delaunay, passamos pelo endereço original da Screaming Mimi (agora uma lavanderia) e voltamos para o apartamento dela. Aí ela me convidou para subir.
Depois do porteiro, de um capacho com estampa de chita e de uma cortina com estampa de chita, dois pequenos pugs chamados Lulu e Ping aguardavam o retorno de Lauper. Ela desapareceu para preparar um prato de biscoitos de gengibre, o mesmo tipo que Jackson Browne sempre lhe mandava no Natal, enquanto seu marido, o ator David Thornton, me contava sobre o primeiro encontro deles, no set do filme Fora de Controle (Off and Running), de 1991. Ela interpretava uma sereia falsa e ele, um assassino. Fora do set, ele ficou imediatamente encantado com o senso de humor dela.
“Ela é o Rodney Dangerfield do rock”, disse ele – querendo dizer: ela é tão engraçada que nem sempre recebe o respeito que merece. “Acho que ninguém tem ideia do quanto ela trabalha”, disse ele.
Para se preparar para a turnê, ela liga o aparelho de som, dança e canta – o que irrita os pugs. Trabalha com um treinador de voz quatro dias por semana. E treina como se fosse um esporte. Sua rotina semanal de exercícios inclui fisioterapia, musculação, alongamento, fisioterapia, musculação, ioga, mais musculação, ioga, aeróbica, fisioterapia e musculação de novo. Nas refeições, saladas enormes que a fazem se sentir como um cavalo.
“Mas quando você é cantora, você tem que ser uma atleta”, disse ela. “Você não pode ficar [palavrão] por aí. Quando você tem 20 anos, tudo bem. Mas quando você envelhece? De jeito nenhum.”
À medida que a turnê se aproxima, ela sonha acordada com “todas as coisas malucas que tentei e que não deram certo” no longo da carreira. O vestido preto com asas de borboleta que ela revelaria ao sair de um casulo. A parte em que ela deveria se transformar atrás de uma tela iluminada por trás, como uma personagem de desenho animado. Uma espécie de saia mecânica que lembrava um globo e deveria girar lentamente enquanto ela cantava.
Ela não sabe ao certo o que vai fazer desta vez. Quaisquer que sejam as mudanças, uma coisa permanece a mesma: “Eu sou quem eu sou, e ponto final.”
Let the Canary Sing no In-Edit 2024
- Cinemateca Brasileira. Largo Sen. Raul Cardoso, 207 - Vila Clementino. Sexta-Feira, 14 junho, às 20h30.
- CineSesc. R. Augusta, 2075 - Cerqueira César. Quinta-Feira, 20 junho, às 18h
- Spcine Olido. Av. São João, 473 - Centro Histórico. Sábado, 22 junho, às 18h.
Este artigo foi originalmente publicado no New York Times./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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