O arquiteto Leandro Amaral sonhava em ter uma loja de vinil. Não grande, nem média. Colecionador desde 1977, quando, aos 15 anos, comprou seu primeiro álbum, ele já tinha uma boa coleção e acabou adquirindo mais discos de uma amiga. Mesmo assim, era pouco para preencher qualquer loja que fosse, qualquer sala. Deveria ter o tamanho ideal.
E encontrou o espaço na rua de sua casa, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, próximo ao cruzamento com a Rua 13 de Maio. Entre bares e academias, diante de um intenso fluxo de carros e ônibus, uma antiga banca de jornal há muito fechada se transformou na loja de discos de Amaral.
A Banca DuChamp e atrai colecionadores, amantes de música, curiosos e, principalmente, iniciantes em busca de uma coleção discos de vinil para chamar de sua. São recebidos por Amaral, um sujeito simpático, de chapéu panamá, e eventualmente pelo Champ, cachorro adotado em abril de 2023, cujo nome da loja homenageia.
Qualquer tentativa de conversa com Amaral será, invariavelmente, interrompida por pessoas com perguntas sobre os valores de algum LP ou por outras surpreendidas pela existência da banca, no meio da calçada, que vende música.
Em pouco mais de cinco metros quadrados, ele dispõe de quase mil bolachas, como os discos de vinil são apelidados.
Música não é hobby, música é amor. O meu hobby mesmo é a arquitetura.
Leandro Amaral, dono da Banca DuChamp
Amaral escolheu um bom momento para o negócio. Uma pesquisa recente, divulgada pela Pro-Música Brasil, filiada à Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI), revelou um aumento de 136% no faturamento das vendas de discos de vinil em 2023 em relação ao ano anterior, chegando a R$ 11 milhões - maior, é claro, do já capenga comércio de CDs no País, mídia lançada nos anos 90 e responsável por “aposentar” os discos em vinil por um período.
Na Banca DuChamp, os jovens no início da coleção de LPs são maioria dos clientes. “Noventa porcento das pessoas que vem aqui têm menos de 35 anos. Gente que comprou um toca-discos recentemente e que encontra muita coisa legal aqui”, revela Amaral. “Já fiquei impressionado com a quantidade de meninas de 25 anos que chegam aqui pedindo disco de heavy metal. Já vendi mais AC/DC para essas garotas do que para quem a gente pensa ser metaleiro.”
A ideia do arquiteto, porém, vai além da venda de vinis. Residindo a poucos passos de distância, ele destaca a existência de dois horários distintos para o funcionamento de sua banca: o comercial, anunciado na entrada em um papel escrito à mão, e o social, que geralmente acontece aos finais das tardes de sábado. “Só não posso colocar mesinha aí fora. Não tenho alvará para isso, mas de resto a gente recebe as pessoas e só falamos de música aqui dentro.”
Desafio de vender os discos nas ruas
Para os comerciantes especializados em discos de vinil usados, caso dos vendedores de rua, o desafio de abastecer o estoque de LPs é maior. A principal estratégia para encontrar os novos títulos envolve esperar colecionadores em busca de negociar as próprias coleções. A tarefa se complica mais quando se trata de álbuns específicos ou de artistas de renome. Encontrar raridades é difícil. Ednaldo Leite, vendedor de um extenso catálogo de vinis exclusivamente na Avenida Paulista nos últimos três anos, detalha o desafio grande de, ao contrário de Amaral, não possuir um local fixo para o negócio.
Leite nota igualmente a alta nas vendas de discos de vinil, e reforça que outras mídias físicas. A paixão pela música iniciou-se na década de 1970, quando ganhou um disco da banda Secos & Molhados. No entanto, foi aos 18 anos, quando comprou uma cópia de Thriller, que sua admiração pelos vinis se intensificou - a inspiração em Michael Jackson levou-o a realizar apresentações como sósia do rei do pop. Não por acaso, o apelido dele é “Billy Jackson da Paulista”.
O público principal de Billy também é composto por jovens. “Os mais novos têm buscado bastante (o vinil) e, principalmente, eles buscam as músicas antigas”, compartilha. O vendedor também revela serem poucos os clientes que chegam com um título específico em mente. A maioria prefere garimpar, álbum por álbum, em busca de algo que desperte seu interesse. “O que mais sai é MPB, pop e samba, sem dúvida. Às vezes a ordem se inverte, mas na maior parte dos meses é assim.”
Para José Roberto, o “Jotha”, um dos expositores das “pedras do Holms”, clube também na Avenida Paulista, itens de músicas popular brasileira têm boa saída, mas “os clássicos do rock e do rock nacional sempre saem”. Também compartilha da dificuldade de encontrar bons álbuns para a venda - discos dos Beatles são raridades.
Eu tinha aqui os 12 (álbuns) dos Beatles em estado de ‘aleluia’. Entrou uma pessoa aqui e comprou os últimos cinco. Onde é que eu vou conseguir outros dos Beatles? É uma coisa que é difícil alguém vender.
Leandro Amaral, dono da Banca DuChamp
A sazonalidade das buscas de discos também flutua de acordo com as notícias em torno destes artistas. Com a morte de Gal Costa, por exemplo, Jotha vendeu nove LPs em um mesmo dia.
Com 129 mil discos à venda, Rubens de Oliveira deu início ao negócio adquirindo grandes lotes de álbuns antigas emissoras rádios que se desfaziam dos acervos. Para abastecer o estoque, ele garante comprar 10 mil discos por semana. Ao contrário de outros comerciantes, Oliveira não mantém uma coleção pessoal. A música é, hoje, um investimento. Além da venda na Paulista, ele administra um galpão e outra loja, e ainda explora o comércio eletrônico na venda dos LPs. Nos fins de semana, junto à sua esposa Ida, ele expõe cerca de 4 mil álbuns no passeio público. Seu diferencial é, segundo ele mesmo, vender qualquer título a um valor extremamente acessível: R$ 20.
Devido aos preços mais populares, os colecionadores mais novos dão preferência ao quiosque de Oliveira, que chega a vender 500 discos nos dois dias em que fica na rua. “Aquele que está começando sua coleção, que comprou sua primeira vitrola, compram discos normalmente de MPB, pop, rock… Os mais essenciais”.
Já peguei LPs que a pessoa me ofereceu um carro para comprar. Algo como ‘se você me vender esses três discos eu te dou meu carro’, por causa da raridade dos álbuns.
Rubens de Oliveira, proprietário da Garimpão Music
Além dos comerciantes ambulantes, há também aqueles que optam por comercializar seus discos de vinil exclusivamente em eventos específicos, como em feiras. Esse é o caso de Sueli Batista, cuja jornada no mundo empresarial iniciou-se ao oferecer parte de coleção de LPs ao sobrinho, então desempregado, para tentar vendê-los. Mesmo ele abandonando a iniciativa duas semanas depois, Sueli decidiu prosseguir por conta própria. Além das feiras, ela também vende em sites de e-commerce, e chegou a ter mais de 10 mil álbuns em estoque. Mas Sueli não pensa em abrir uma loja física - além do medo de assaltos, ela acredita que o maior mercado para esse segmento se encontra na internet.
Para ela, o apego emocional ao vinil impulsiona esse nicho de mercado, evidenciado por clientes que compartilham lembranças familiares ligadas às músicas: “Muitos vem aqui e falam ‘minha avó ouvia isso’, ‘meu pai ouvia isso’, e levam o disco. A relação de Sueli com a música também se iniciou nas sessões em que escutava LPs de Elizeth Cardoso e Claudete Soares com a mãe.
Quem são os colecionadores de vinil?
Iniciante no universo do vinil, a jornalista Malu Patrício tem 24 discos no novo acervo, com títulos de Rita Lee e John Lennon à Taylor Swift. “Meu pai é artista, então cresci envolvida no mundo da música. Quando me mudei para São Paulo comecei minha coleção de discos”, conta. Para Malu, a melhor parte é descobrir novos álbuns e, em seguida, comprar os LPs. “Tem de tudo um pouco que combina com a minha personalidade na minha estante”, completa.
Ouvindo os discos antigos, tenho uma chance de criar novas memórias com o vinil que antes pertenceu a outra pessoa.
Malu Patrício, jornalista e colecionadora de discos
Também colecionador iniciante, com cerca de 30 discos na prateleira, Keith Liam, fã dos Beatles e, especialmente, de Paul McCartney desde os 8 anos, trocou sua camiseta – uma reedição rara que homenageia o uniforme com o qual o São Paulo Futebol Clube conquistou o primeiro título mundial em 1992 – por uma cópia inglesa da década de 1970 do álbum de estreia do britânico. “A Andressa (dona da loja) chegou em mim e falou: ‘Se você tirar essa camiseta agora e me der, o vinil é seu’. Eu dei uma pensada, mas tirei a camisa e ela me deu o disco”, conta. O LP, segundo Liam, custava quase R$ 400.
Fábio Dias, colecionador desde 15 anos, morou nos Estados Unidos e aproveitou para enriquecer a coleção com títulos raros e exclusivos, os quais trouxe para cá quando retornou ao Brasil. Atualmente, a coleção ultrapassa dos 1.500 discos, do rock ao jazz. Diante da facilidade em adquirir os vinis, ele revela comprar lotes de até 600 discos de uma vez. “O cheiro do disco, a sonoridade… Para mim, o amor aos discos é tão grande quanto era antigamente. Vinil é vinil. E a gente ainda cometia o erro naquela época de emprestar. Nunca mais.”
Quem faz os discos em vinil?
Dono de uma fábrica de discos de vinil no Bom Retiro, região central de São Paulo, Michel Nath começou a estudar música com 14 anos, na antiga Universidade Livre de Música (ULM), quando Tom Jobim ainda atuava como reitor na instituição. “Cresci estudando com gente do perfil musical mais diverso possível: do clássico ao pop. Não tenho muita distinção entre música erudita e popular”, comenta.
O DJ iniciou a fábrica de discos de Vinil Brasil quando um conhecido descobriu, em um ferro-velho na zona leste de São Paulo, oito prensas de vinil antigas. “A conta de se fazer uma fábrica no Brasil não fecha. Precisa importar prensa, e a fábrica não é só uma prensa”, relata. “Meu codinome de DJ é Alquimix. Um amigo meu sempre me fala que sou alquimista. E eu tinha essa missão de pegar aquilo em estado bruto, em chumbo, e transformar em ouro. E hoje esses equipamentos estão aqui, em funcionamento.”
A Vinil Brasil teve dois milagres: o primeiro foi encontrar as prensas no ferro velho e o segundo foi encontrar a melhor sala de corte de matriz de disco de vinil que já existiu no Brasil.
Michel Nath, dono da fábrica Vinil Brasil
Para Nath, a geração mais jovem enfim descobriu o encanto da mídia física. “A geração Z está entendendo que isso é atemporal e que tem que existir. Você tem a música na sua mão, é tangível”, acrescenta.
Nath concorda que o vinil vive um “boom” no Brasil. De 2023 até junho de 2024, a fábrica viu sua produção aumentar em pelo menos 15%. Ele reforça o cenário positivo de vendas e de fabricação, mas enfatiza os problemas de administrar uma empresa do segmento no País, com a alta taxação para a importação de insumos e de matéria-prima, além dos gastos elevados com tecnologia, por exemplo. “É uma loucura. E eu faço isso porque eu realmente amo música”, garante.
As lojas ‘tradicionais’ de LPs
Localizado no centro histórico de São Paulo, o bairro da República é o lar da galeria Nova Barão, um espaço a reunir diversas lojas dedicadas à comercialização de discos. Andressa Silva (a mesma que trocou o disco de McCartney pela camisa do clube São Paulo com o Liam), proprietária da Sonzera Records, considera o LP um “apetrecho de luxo” para as gravadoras.
Na maior parte das vezes, ela argumenta, a venda dos álbuns físicos não constitui em uma fonte significativa de receita para essas empresas. “Quem ganha dinheiro com vinil são gravadoras do tipo da Taylor Swift, que vendem milhares e milhares de cópias. Não é uma prensagem de mil cópias que um artista nacional faz que dará dinheiro.”
No entanto, para Andressa, as lojas físicas têm um papel essencial em fornecer informações sobre o mundo do vinil. “A gente gosta de estar na loja. A gente gosta de música de verdade”, conta.
A vendedora Ananda Passarelli reforça os benefícios de comprar esses itens presencialmente: “Você pode entrar aqui, ouvir um som que não conhece, consegue indicação de música, conhece amigos. Você aumenta a sua rede de gente que gosta de LP.”
Frequentemente os clientes do Sonzera Records vasculham os títulos disponíveis e, curiosos, recorrem aos celulares para escutar, no streaming, as faixas dos álbuns que lhes chamam a atenção. “O negócio do disco é esse. É olhar para cá e falar ‘será que isso aqui tem potencial de tocar na minha casa?’ e levá-lo ou não com você.” Ananda também destaca que alguns artistas são campeões de venda, e duram pouco tempo nas prateleiras da loja: “se a gente coloca um Djavan ali, ele sai no dia. Aparece aqui e vende na hora.”
Gilberto Custódio, um dos responsáveis pela Locomotiva Discos, também na Galeria Nova Barão, avalia que as pessoas estão descobrindo o prazer de ouvir e colecionar os bolachões. Ele destaca que a interação com essa mídia transcende a simples ação de ouvir música. Custódio ressalta a importância da experiência de explorar a cidade em busca de novos discos, considerando uma atividade gratificante que complementa o prazer de colecionar.
O Estadão visitou, em abril deste ano, outra loja de discos de vinil, desta vez em Pinheiros, zona oeste de São Paulo. A tradicional Eric Discos, administrada pelo inglês Eric Crauford, de 78 anos, foi a única loja do Brasil escolhida para uma divulgação de um dos singles do novo álbum de Taylor, o The Tortured Poets Department. O clipe da música Meu Talismã, da cantora brasileira IZA, também foi gravado por lá.
Crauford, que já recebeu Supla e U2 em sua loja, conta que tem mais de 80 mil discos à venda no local. Na vitrine, a mensagem de que “se não temos, acharemos” qualquer disco que o cliente procura, chama a atenção. E essa atenção, a geração Z não encontra nas plataformas de streaming.
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