Quando Daniela Mercury quase - literalmente - derrubou o Masp (Museu de Arte de São Paulo ) em um show na avenida Paulista em um começo de tarde de 1992, ela colocou de pé definitivamente três pilares importantes que iriam sustentar sua arte nesses mais de 30 anos: o canto, a dança e o comprometimento com a música que vem das ruas de Salvador.
Neste domingo, 28, quando subir ao palco da 25ª edição do Festival de Verão de Salvador (veja a programação completa mais abaixo), em show em que convida a cantora e ministra da cultura Margareth Menezes e o bloco afro Ilê Aiyê, Daniela, mais uma vez, vai reafirmar essa sua vocação. Talvez à margem do que o mercado exige hoje, com hits pensados para viralizar em redes sociais ou feats com artistas do momento. Mas, inevitavelmente, perto do som dos guetos da cidade em que nasceu.
“Vocês verão no palco duas meninas baianas (ela e Margareth) e um monte de deuses do Ébano (o Ilê). Isso é dizer para a população que ela é importante. É algo rico afetivamente”, diz Daniela em conversa com o Estadão. O encontro poderá ser visto ao vivo pelo Multishow e pelo Globoplay, assim como as demais atrações do festival.
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Margareth Menezes segue na mesma linha de pensamento. “É um momento de consagração dessa luta, de uma história de resistência. Daniela tem um amor imenso pela cultura. Eu tenho a minha história. É uma conjugação de legados que fortalece a cultura afro-brasileira”, diz a cantora, em mensagem de voz para a reportagem.
Segundo Daniela, o roteiro colocará o Ilê Aiyê, o primeiro bloco afro do Brasil, fundado há 50 anos, como o grande protagonista, o coração do show que terá 1h10 de duração. “Sugeri para a Margareth e ela aceitou na hora”, conta Daniela.
Para Margareth, nada mais justo. Os blocos afros deram, inegavelmente, uma contribuição fundamental para a formação da música popular brasileira. “As claves dos tambores foram resguardadas pelas casas de candomblé e pelas pessoas de santo. Isso gerou um universo de criatividade imenso, por meio da fusão das culturas negra, indígena e europeia”, diz.
Segundo Daniela, só ela e Margareth cantam no carnaval o repertório que nasce no Ilê e o samba reggae em seu estado mais puro. “É mais denso, mais cult. Mesmo que (outros artistas) usem a percussão, não têm relação com a linguagem, com as bandeiras e com as lutas”, diz a cantora, que afirma ter se agregado aos blocos afros em 1989, antes mesmo de se tornar uma cantora de sucesso.
Usar a música e a cultura foi grande inteligência de sobrevivência dos blocos afros e do povo negro. Hoje temos um ambiente melhor para falar de questões que nos afligem e mostrar que precisamos de um novo olhar para a cultura negra
Margareth Menezes
Versáteis, os músicos Ilê devem mostrar que foram eles que criaram o novo pagode baiano - que pode ser ouvido, por exemplo, no som feito pelo Psirico e Léo Santana -, flertar com a música eletrônica e passear pelo rock’n-roll.
A dança estará presente não apenas nos passos da Daniela, mas também da Deusa do Ébano do Ilê, a coreógrafa Larissa Valéria Sá, nascida no Curuzu, assim como o bloco, que assumiu o posto recentemente. Para a cantora, trata-se de uma cultura “popular erudita de movimentação”.
“Isso é o que de mais precioso terá no Festival de Verão. Porque as pessoas não vão ver o Ilê na rua. É preciso entender melhor quem são eles e suas canções
Daniela Mercury
Na apresentação, o Ilê vai mostrar sua música para o carnaval, Ilê Bodas de Ouro. Em cinco décadas de existência, o bloco nunca ganhou nenhum prêmio do carnaval baiano.
Com um pé no carnaval
O Festival de Verão de Salvador é reconhecidamente uma espécie de aquecimento para o carnaval baiano. O festival deixa mais claro o que será sucesso nas ruas da cidade durante os dias oficiais da folia.
Margareth lembra que participou logo no começo, por quatro ou cinco anos. Teve, segundo ela, que lutar para estar no palco principal do festival. “O Festival de Verão está em um momento de reposicionamento, entendendo a música baiana no aspecto nacional e seu poder internacional”, diz a cantora e ministra da cultura.
Neste ano, o diretor artístico do Festival de Verão, Zé Ricardo, vai promover encontros como o de Carlinhos Brown e o grupo Baiana System, Iza e Liniker, Léo Santana e Luísa Sonza, Lulu Santos e Gabriel O Pensador e Seu Jorge e Mano Brown. Cello Green será a atração internacional
“É o único festival baiano! É o nosso Rock in Rio, né?”, diz Daniela. A cantora se lembra bem do primeiro. Levou para o palco a turnê Elétrika, com a qual rodava o Brasil e o mundo à época, com cenografia e balé. “Sempre fui meio louca. Sempre fiz meu Cirque du Soliel”, diverte-se.
Daniela sabe que paga um preço por fazer algo mais conceitual. “Quando levei a eletrônica para o trio, a cidade estranhou”, diz Daniela.
Há um ditado que na Bahia o sucesso é medido pela quantidade de mãos levantadas pelo público
Daniela Mercury
Daniela entende que os desafios são grandes - e nem sempre estão no chão da rua. “Os algoritmos (das plataformas de streaming) continuam a reproduzir a mesma branquitude, machismo e homotransfobia. Não são diferentes dos seres humanos”, diz.
Confira a programação do Festival de Verão 2024
Sábado - (27/01)
CeeLo Green
Iza convida Liniker
Baco Exu do Blues convida Psirico
Bell Marques convida Claudia Leitte
Ivete Sangalo
Carlinhos Brown & Baiana System
MC Cabelinho convida TZ da Coronel
Domingo - (28/01)
Leo Santana convida Luísa Sonza
Lulu Santos convida Gabriel o Pensador
Seu Jorge convida Mano Brown
Thiaguinho convida Maria Rita
Daniela Mercury convida Ilê Aiyê e Margareth Menezes
Gloria Groove convida Péricles
Àttooxxá
Teto convida Matuê
Festival de Verão de Salvador
Dias 27 e 28 de Janeiro
Parque de Exposições - Salvador/ BA
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