Foram 11 anos desde o último álbum de uma carreira com uma proposta sonora bem definida, que chegou solitária de turmas, mas conseguindo aceitação de críticos e um espaço respeitável no mercado europeu que identificava na música brasileira que Fernanda Porto fazia uma espécie de atualização por sua elegância eletroacústica. Muitas vezes mais elétricas do que acústicas, o que a levou a ser identificada logo com o drum ‘n’ bass em alta, já no estouro do disco de 2002, e a ganhar um certo rótulo de drum ‘n’ bossa.
Quatro discos se passaram desde sua origem e, então, Fernanda se retirou de cena por motivos mais pessoais do que artísticos. Agora, mais precisamente há duas semanas, ela voltou alinhada com o novo tempo, onde os discos rodam mais devagar, uma faixa a cada 15 dias. Seu trabalho se chama Corpo Elétrico e Alma Acústica, com dois singles sendo lançados por mês, cada um com um vídeo produzido em ‘short film’, que estará na semana seguinte disponível no canal oficial do YouTube e nas redes sociais da artista, sempre às sextas-feiras. Isso será feito até se completarem as 14 faixas inéditas que ela compôs e gravou em um período aproximado de dois anos. As versões físicas, em CD e em LP, sairão em agosto.
Para tudo há uma história, mas a principal pergunta nesse momento talvez seja sobre o que levou a cantora a deixar os palcos por tanto tempo, e num momento em que sua carreira parecia estar sedimentada, mesmo com altos e baixos, com quatro discos lançados. Uma série de acontecimentos, ela conta, a levaram a uma depressão daquelas que surgem silenciosamente, ganham território físico sem dar maiores sinais até que algo aparentemente corriqueiro a deflagre. “Fiquei ao todo seis meses com essa depressão, tomando remédios fortes, mas com um médico me dizendo que eu sairia dessa.”
Fernanda conta que teve problemas sérios com o seu empresário em 2004, algo que a desestabilizou. Mais tarde, em 2009, seu terceiro álbum, Auto Retrato, não foi nada bem perto dos números oficiais dos anteriores. A estreia de 2002 havia vendido 120 mil discos; Giramundo, de 2004, faturou 50 mil; um Ao Vivo, de 2006, caiu para 5 mil; e, enfim, Auto Retrato, de 2009, ficou nos 3 mil. O pai sofreu um abalo profissional, as dívidas da família aumentaram, seu estúdio foi a leilão e um choro convulsivo passou a frequentá-la entre duas e três horas por dia. “Muita coisa desandou”, ela diz. Depois de deixar a medicação sob orientação médica, a música voltou.
O álbum é curioso por aquilo que soa e também aquilo que silencia. E o que soa nunca traz esse histórico de agonias na primeira camada. Sua voz está cristalina, precisa, ajustada com folga em tudo o que se propõe a fazer sem grandes recursos eletrônicos e, apesar de sua ideia de equilíbrio eletroacústico, está mais humana e próxima do que qualquer robotização. A música que abre o disco pode ser interpretada como biográfica. “Tempo vou pedir pra você vir comigo / Se acelero é porque te sigo / Não quero estar nem antes nem depois / O teu compasso muda e eu não sei”, e então pede, no refrão: “Tempo, tempo me ensina a hora certa de chegar”. Apesar da emoção que ela pode levar a quem conhece a história vivida por Fernanda, está longe de ser uma canção triste.
O álbum quase nunca é triste. Melodia Infinita faz até o caminho contrário ao abrir assim: “Vou cantar pra você melodia infinita / Pra tentar lhe dizer uma coisa bonita / Dia a dia vem você de novo no meu pensamento/ Nessa vida a gente sempre volta no melhor momento / Eu enrosco sempre a minha mão no teu cabelo desfeito”. Outra que parece biográfica é Paulistana de Verdade. “Eu não nasci aqui, de onde foi que eu vim? / Mais eu quero ficar nessa imensidão / Preciso desse chão pra ser meu lugar.” E nem mesmo Corpo Elétrico, a canção, é assim tão elétrica. Sem sinais do peso do drum ‘n’ bass de outros tempos, ela diz: “Do meu corpo sai faísca afinal / Carne e osso, tudo pisca no momento especial / O meu corpo é elétrico exótico arsenal / O meu corpo é magnético um imã tropical.” A próxima é, então, Alma Acústica, com uma subida melódica perigosa logo no primeiro verso, que ela enfim consegue subir enquanto canta com muita beleza: “A minha alma canta, minha voz de cantor / Maria Mariana meus ancestrais / Dizem muito mais do que eu posso dizer / Pedra sobre pedra minha história nesse chão...”.
Fernanda tem um álbum de canções apaixonadas preciosas, curiosamente lançadas em um tempo em que essas paixões não parecem mais possíveis. É um raro álbum não inspirado em dias de confinamento e em amores distantes que não tem, mesmo com toda a autoridade nos arranjos programados que a legitimaria fazer o que quisesse com isso, as texturas que poderiam deixar tudo no campo dos sons etéreos e dos sonhos. Ele é real, palpável, sólido, com um chão bem marcado, de harmonias definidas e de uma estrutura arrebatadoramente pop. E que torna-se também um álbum dos tempos modernos, ou pós-modernos, já que os modernos ela já havia inaugurado em 2002 com seu olhar e suas pesquisas colocando no melhor lugar do novo milênio o samba e o maracatu.
Corpo Elétrico foi feito inteiramente por ela, em toda a cadeia de produção. Poderia ser chamada de centralizadora demais ao dispensar sua banda para fazer tudo a seu jeito, mas a passagem que ela mesma conta reflete que a solidão no feitio artesanal mesmo dos sons eletrônicos não foi uma questão ditatorial. “Um dia, alguns músicos que tocam comigo vieram em casa, ouviram as músicas e tentaram colocar algo. Depois de um tempo, depois de fazerem dois ou três arranjos, disseram que a forma que eu havia feito era a melhor mesmo.”
O que fica mais à frente agora, depois de 11 anos a mais de vida, com todo o doce e o amargo que Fernanda viveu, é sua canção. Ela estava também lá nos discos dos anos 2000, mas o deslumbramento com a descoberta de um novo jeito de fazer as coisas pode tê-la direcionado para seguir as armadilhas de um pensamento que, um dia, havia dado certo. Uma depressão depois não deixaria mesmo as coisas serem como eram. “Quando eu descobri o drum ‘n’ bass, fiz o disco todo pautado por ele, mas a verdade é que sempre fui mesmo da canção. Naquela época eu queria defender um argumento musical, usar os ritmos brasileiros com sons eletrônicos, e me sinto ainda representada por isso.” O lado bom de um disco feito em casa é o fato de ele ser também um disco apresentável em casa. Ainda não está certo, mas Fernanda já pensa em como mostrá-lo em forma de live.
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