Não foi vendo um pianista nem um violonista tocar, nem foi ouvindo uma de suas vozes preferidas que chegavam pela Rádio Nacional, que Elis Regina decidiu ser a cantora que acabou se tornando. Ela se jogou mesmo na noite do Rio de Janeiro a partir do dia em foi levada ao Beco das Garrafas de Copacabana por um jornalista, Renato Sérgio, que assistiu a cena toda e contou ao repórter enquanto concedia uma entrevista para a biografia Nada Será Como Antes. Elis sentou-se no chão da boate Bottle’s Bar, no Beco das Garrafas, e assistiu à primeira grande experiência extrassensorial de sua vida ao ver um baterista diante de si. Não qualquer baterista, mas Edison Machado, o baterista. “Meu Deus, de que planeta esse homem saiu?”, perguntou, ainda menina, ao amigo Renato.
Elis sentiu o que a humanidade sente desde que os músicos do começo do século 20 decidiram juntar em um só aparelho o que as orquestras só resolviam com três ou quatro percussionistas. Em vez de um tocar o bumbo, outro o prato e um terceiro a caixa, não seria mais fácil se todas as peças fossem pilotadas por apenas uma criatura ligeiramente boa de coordenação motora? E foi assim. Quando o jazz apareceu, a bateria já estava toda organizada para servir mentes musicalmente insanas como a de Buddy Rich, um polvo de seis braços considerado até hoje o maior de todos; Tony Williams, um homem com mais pensamentos rítmicos do que as suas mãos poderiam comportar; e Billy Cobham, o passo além do jazz em direção ao rock progressivo, que libertou seu gênero e derrubou a fronteira que poderia haver com o primo iletrado, o rock and roll.
Os bumbos pareciam anunciar, no final dos anos 50, a chegada de Elvis Presley não nas asas de uma guitarra, mas nas baquetas de um baterista. Seu nome: Ronnie Tutt, um homem capaz de conduzir o comandante para o céu e para o inferno com a mesma velocidade e ainda inspirar seus rebolados avassaladores. A bateria de Elvis seria largamente reproduzida no universo do rock com a mesma gana e fúria, mas ganharia bons representantes também no extremo oposto.
Os Beatles, talvez influenciados pelas duplas e trios sem bateria do skiffle inglês, que Paul e John ouviam nosseus primeiros anos em Liverpool, nunca procuraram por um baterista realmente virtuoso. Queriam apenas alguém que pudesse, a princípio, aparecer nos ensaios no horário certo e manter o ritmo da música no tempo. E foi assim que chegaram a Ringo Starr, mais velho, mais respeitável, mas jamais um ás solista em seu instrumento. A história provaria que as grandes bandas de rock seriam feitas em mãos econômicas quando o antagonista de Ringo, Charlie Watts, ajudaria a elevar os Rolling Stones à condição de banda mais longeva da história. Charlie jamais usaria mais do que seis peças como também deixaria sempre a mão direita imobilizada no alto dos chimbaus para tocar a caixa. Um estilo ainda mais econômico dentro da já econômica linguagem da primeira música pop de abrangência interplanetária.
Mas o rock, esse animal mutante, se transformaria mais algumas vezes antes que alguém resolvesse decretar algum padrão definitivo para seus ritmistas. Os primeiros anos de hard rock, quando ele nem tinha esse nome, trariam o elefante John Bonhan conduzindo uma das baterias mais “gordas” da história. Keith Moon colocaria toda a sua fúria descontrolada dentro de um tempo específico para fazer o The Who passar pelo portal dos imortais. Neil Peart, do Rush, resolveria de outra forma a necessidade de dar vida à explosão de ideias que saíam de sua cabeça: aumentaria seu armamento ao máximo, até que ele fechasse um círculo em torno do próprio corpo. Ginger Baker, Bill Bruford, Mitch Mitchell, Clyde Stubblefield, Phil Collins, Steve Gad, Levon Helm, Nigel Olsson, Stewart Copeland. Impressionante como um simples toque da baqueta na pele de uma caixa pode ser algo tão pessoal e capaz de recriar todo um universo.
Quando Elis se sentou diante de Edison Machado, que tocava no trio do pianista Dom Salvador, ela nem sabia que seu apelido era Edison Maluco. Doido de pedra, Maluco, ou Machado, só teve Milton Banana como páreo nos anos em que a música brasileira recebia litros de sangue do jazz por transfusão. Foi ele quem começou a quebrar tudo quando a ordem era manter os móveis no lugar. Ele quem criou a condução do samba no prato da bateria, algo que hoje o mundo todo faz sem nem saber que um dia houve um criador. Mesmo tendo gravado com Chet Baker e Ron Carter nos anos 60, foi no Brasil que deixou todos os seus filhos saudáveis e devidamente registrados em cartório: Nenê, Cuca Teixeira, Paulinho Braga, Rubinho Barsotti, Helcio Milito, Gigante Brasil, Jorginho Gomes, Wilson das Neves, Toninho Pinheiro, Pupilo, Sergio Machado, Edu Ribeiro, João Barone, Adriano de Oliveira, Jurim Moreira, Marcio Bahia, Robertinho Silva. A música que fazem poderia até substituir as harmonias e solos da guitarra ou o chão grave do contrabaixo por outros instrumentos, mas jamais seriam as mesmas se não houvesse esse amontoado de peças barulhentas chamado bateria.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.