Aos 72 anos, o pianista Nelson Freire desfruta um momento olímpico. Grava com as mais seletas orquestras e maestros do planeta. Faz recitais onde deseja e com o repertório que decide. Nesse contexto, novas gravações têm convivido com outras que permaneceram inéditas ao longo do tempo.
Acabam de chegar às plataformas digitais e em dois CDs do pianista: um recital Brahms gravado no início deste ano para a Decca; o outro é do selo Audite, e mistura recital e concerto com orquestra. O recital foi gravado em estúdio por Nelson aos 22 anos, em 1966, tocando cinco das peças líricas de Grieg e três peças de Liszt: duas rapsódias húngaras (números 5 e 10), uma delas, salvo engano, que jamais havia gravado (a quinta); e a polonaise n.º 2 evocando o brilho das de Chopin. O concerto n.º 2 de Camille Saint-Saëns foi gravado 20 anos depois, em 1986, com a Orquestra Sinfônica da Rádio de Berlim, regida por Adam Fischer. Acréscimo importante em sua discografia.
Nelson montou o repertório de seu CD Brahms com suas peças preferidas. Revisita, 50 anos depois, a imponente Sonata n.º 3, op. 5, primeira peça que gravou em 1967. Uma leitura à altura dessa sonata, chamada de “sinfonia disfarçada” por Robert Schumann. Afinal, o jovem Brahms pôs nela tudo o que sabia.
Depois de tamanho tour de force, Nelson nos deixa compartilhar as confissões musicais de Brahms nos anos finais da vida. É sintomático, aliás, que Brahms tenha se dedicado ao piano no início (as três sonatas aos 22 anos) e no final de sua vida (em 1892/3, aos 60 anos, com os quatro ciclos de intermezzi e peças curtas, dos opus 116 ao 119). Nelson pinça, aqui e ali, nesse jardim de delícias pianísticas, suas paixões e as toca com imensa delicadeza: o “Capriccio” (op. 116, n.º 1), “breviário do pessimismo”, segundo seu amigo e crítico Hanslick; a linda canção de ninar do op. 117 sobre esses versos: “Dorme tranquila, minha criança, e fique sabendo: não consigo te ver chorar...”; a vigorosa Balada (op. 118, n.º 3) em tudo parecida com a Rapsódia do opus 119 n.º 4. E dois contrastes absolutos que costumam conviver na maturidade das pessoas: a indizível tristeza do Intermezzo n.º 1 e a felicidade ingênua do n.º 3, ambos do opus 119, combinando com a nostálgica versão para piano solo da Valsa op. 39 original para piano a quatro mãos.
De Bach a Offenbach. Foi assim que o pianista polonês Zygmunt Stojowski (1870-1946), aliás professor de Guiomar Novaes (musa eterna de Nelson), qualificou com humor o concerto em sol menor escrito em 17 dias por Saint-Saëns em 1868 a pedido do pianista e compositor russo Anton Rubinstein. De fato, para ouvidos distraídos os compassos iniciais com a nota-pedal no grave e os arabescos na mão direita no piano solo remetem a Bach. E o finale Presto é uma deliciosa tarantela com um pé no vaudeville que Offenbach assinaria sem problemas.
Para Liszt, em carta a Saint-Saëns, “a forma é nova e muito feliz (...) você mantém o brilho do pianista sem sacrificar nenhuma ideia do compositor – regra essencial nesse gênero”. Com razão. Não há movimento lento: ao Andante sostenuto inicial (que tem mais de vibrante do que de sostenuto), seguem-se dois movimentos rápidos, o Allegro scherzando e o Presto à Offenbach.
Se para o grande público a atração é o concerto, para os súditos de Nelson Freire o melhor está no recital. Aos 22 anos, ele acrescentava ao fogo da juventude o toque aveludado nessas miniaturas líricas de Grieg. Confira a delicadeza dos trêmolos de “Passarinho” (opus 43, n.º 4), um minuto e meio de puro encantamento; ou a introspecção quase schumanniana em “Viajante solitário” (op. 43, n.º 2).
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