Durante 44 anos uma fita de vídeo acompanhou o fotógrafo Paulo Kawall, 70 anos, por onde ele morou. Ficava sempre em sua mesa de cabeceira, junto com outras nas quais ele registrou com uma câmera que comprou em Nova York, no início dos anos 1980, cenas de sua família. Na etiqueta, já meio apagada pelo tempo, ainda era possível de ler uma anotação feita com caneta azul: ‘Elis’.
Apenas em fevereiro deste ano que Kawall, que no passado assinava com o sobrenome Vasconcellos, decidiu digitalizar a fita. A conversão para o digital revelou uma raridade: 35 minutos de uma das apresentações da turnê Trem Azul, a última apresentada por Elis Regina (1945-1982), em 1981. Nem Elis e nem mesmo Kawall assistiram à filmagem na época. Som e imagens guardam as marcas do tempo, que não tiram o brilho da descoberta.
São cenas raras, jamais exibidas da forma como o Estadão, com exclusividade, apresenta agora, no dia que Elis completaria 80 anos. Ao que a reportagem pôde apurar, as imagens foram feitas no Palácio da Convenções do Anhembi, durante a segunda passagem de Trem Azul por São Paulo, em outubro de 1981 - o show estreou em julho e passou por cidades do sul e do interior de São Paulo antes de voltar em cartaz na capital paulista.
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No mesmo mês de outubro, Elis levou Trem Azul para o Rio de Janeiro, em apresentações que se estenderam até novembro. A cantora morreu cerca de seis meses após a estreia da turnê, no dia 19 de janeiro de 1982, em São Paulo.

“Filmei para mim mesmo. Nunca assisti. Nunca mostrei para ninguém. A primeira pessoa que viu foi você”, diz Kawall à reportagem do Estadão. “Achei bem filmado. Poderia ter feito uma carreira de cineasta”, brinca o fotógrafo, que fez um curso de vídeo com a renomada fotógrafa Claudia Andujar, mas nunca conseguiu largar a fotografia.
“Devo ter filmado apoiado no palco. Não lembro de ter levado tripé”, explica. Kawall também não levou iluminação própria. Por isso, o registro, vez ou outra, fica mais escuro - era a luz do próprio show, que mudava de clima a cada bloco de canções.
As cenas assistidas pelo Estadão mostram Elis alegre, leve e, em alguns momentos, quase over, acompanhada por uma banda que tocava alto, bastante alto. Ela corresponde a cada acorde, brinca e ‘conversa’ com os músicos. Mantém o pique e a qualidade vocal durante toda a gravação. Ainda tem fôlego para agradecer seus companheiros de palco de joelhos, ao final da apresentação.
Em um bloco mais efusivo, o show alterna vinhetas de programas de TV como Os Trapalhões e Fantástico com trechos de sucessos da época, entre eles, Começar de Novo, Menino do Rio e Lança Perfume (leia mais abaixo sobre o show). Elis termina a apresentação ovacionada ao cantar Maria, Maria.
Kawall conheceu Elis quando estava em começo de carreira. Recebeu a missão de fotografar a cantora para a recém-lançada revista Música quando ela fazia o show Falso Brilhante, um dos marcos de sua carreira. A foto foi capa da publicação e ilustrou a reportagem publicada pela revista.
A relação profissional - e, sobretudo, de confiança - seguiu. Em 1979, Kawall fazia uma exposição no Parque Lage, no Rio de Janeiro, quando foi chamado às pressas a São Paulo para novamente fotografar Elis. A gravadora Warner, da qual ele era contratado, queria material de divulgação para o álbum Essa Mulher, lançado pela cantora naquele ano.
Apenas Elis e Kawall estavam no estúdio, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Foi a própria cantora que se vestiu e se maquiou. Uma das fotos dessa sessão, também recém-descobertas no arquivo físico do fotógrafo, ilustram a capa da edição ampliada da biografia Elis - Nada Será Como Antes, do jornalista Julio Maria, que será lançada nesta terça-feira, 18, pela Companhia das Letras.

Kawall juntou as fotos dessa sessão e preparou um livro de bolso. Ele aguarda a liberação dos filhos da Elis para lançá-lo. Pretende vendê-lo por um preço acessível. Quer que Elis seja vista. “Acredito que seja um dos únicos ensaios que Elis estava mais sensual”, diz. “Lembro que ela estava de saco cheio dessa história de ‘essa mulher’ que a gravadora havia planejado para ela naquele momento”, conta.
O fotógrafo tem ainda o projeto de lançar outros dois livros de fotos inéditas de Elis - um com imagens verticais e outro com registros na horizontal. Kawall aguarda apoio para poder viabilizar o alto custo da publicação.
Uma das imagens mais emocionantes, igualmente jamais divulgada, traz a cantora Maria Rita, à época com três anos, agarrada à mãe, em foto tirada na Serra da Cantareira, onde Elis tinha uma casa, em junho de 1981. Os cliques foram feitos justamente para o material de divulgação do show Trem Azul.
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No palco, uma Elis mais ‘pop’ e ‘televisionada’
Não é exagerado afirmar que Trem Azul foi um ponto fora da curva na carreira de Elis. Depois do musical Falso Brilhante (1975-1977), do politizado Transversal do Tempo (1977-1978) e do teatralizado Saudade do Brasil (1980), Elis queria fazer um recital. Flertou com o pop que dominava as rádios naquele momento. Chamou o diretor Fernando Faro (1927-2016), homem da música e da TV, para dirigi-la. Pediu algo “simples”.
Criativo, Faro resolveu aproveitar o fato de Elis ser uma cantora revelada pela TV, e juntou isso à canção Trem Azul, de Lô Borges e Ronaldo Bastos. “O Trem Azul é o azul das televisões nas casas, à noite. Você olha e vê o azul”, disse Faro, em entrevista à revista Época, em 2011.
Juntou-se à ideia de Faro o fato do Canecão Paulista, onde o show estreou em São Paulo, ter uma porção de colunas na plateia. Bonecos desenhados por Elifas Andreato (1946-2022), com um monitor na cabeça, instalados nos pilares, compunham o cenário e reproduziam o que ocorria no palco.
Os arranjos do show Trem Azul foram divididos entre Cesar Camargo Mariano - que deixou a produção ainda na época dos ensaios, quando ele e Elis se separaram - e o guitarrista Natan Marques.
No fim do primeiro ato do show, havia um áudio pré-gravado em que Elis lia um texto escrito por Faro. Elis dizia que deixava de ser ela para ser um “rascunho”, “uma forma nebulosa feita de luz e sombra”. No início do segundo ato, então, Elis saía do palco e se transformava em uma imagem de televisão.
Enquanto a banda tocava uma versão instrumental de Baila Comigo, que era a abertura da novela das 8 da época, um telão exibida um vídeo no qual Elis aparecia sendo maquiada no camarim e saindo em direção à câmara. O filme foi gravado na TV Globo, com a ajuda da equipe do programa Fantástico e do diretor Narciso Kalili.
De volta à cena, Elis fazia um bloco em que misturava trechos de canções de sucesso da época com vinhetas de programas de TV - tudo bem caricatural e intencional. A cantora corria no palco, simulando o tempo corrido da TV. Ao som da abertura do Fantástico, usava uma máscara cheia de lantejoulas para, depois, emendar Começar de Novo, abertura da série Malu Mulher.
Em seguida, ao som da vinheta de Os Trapalhões, com o auxílio de uma gravata, imitava com perfeição Renato Aragão como Didi para, logo em seguida, debochar de Baby do Brasil cantando Menino do Rio. A plateia ria.

Ao ouvir a banda tocar The Fuzz, abertura do Jornal Nacional, fazia uma cara meio plastificada, passava a mão nos cabelos para lamber a franja e vestia um blazer. Como para exorcizar o formato engessado que o telejornal tinha à época, explodia, na sequência, ao cantar Lança Perfume, erguendo os braços e dançando, simulando o estilo rock carnaval de Rita Lee.
A biografia Elis - Nada Será Como Antes, de Julio Maria, reproduz um diálogo que Elis teria tido com o músico Cassio Poletto, na mesma época do show. ”Fazer sucesso cantando Lança Perfume é fácil”. “Quero ver fazer sucesso cantando esses versos com as harmonias que eu canto”.
A seguir, agachada no chão, se despia do blazer para reencontrar a cantora mais próxima do que sempre foi para encerrar o show com uma sequência de O Que Foi Feito Devera (de Vera), Caxangá e Maria, Maria.
De acordo com uma fonte que fez parte da equipe de Trem Azul, mas que prefere não se identificar, Elis, verdadeiramente, parecia muito à vontade com a proposta do espetáculo. Havia uma preocupação por parte da cantora sobre como o show seria recebido no Rio de Janeiro. O de Gal Costa (1945-2022), Fantasia, apresentado a partir de julho 1981, foi duramente criticado pela crítica local. “Elis não queria passar pelo mesmo problema”, diz a fonte ao Estadão.
E não passou. Segundo essa mesma fonte, o show foi muito bem recebido no Rio. Assim como ocorreu em outras praças. Músicas como O Trem Azul, Se Eu Quiser Falar com Deus e Maria, Maria levavam o público ao delírio. Até as canções mais lentas, como Flora, de Gilberto Gil, agradavam. No vídeo feitos para Kawall é possível ouvir a empolgada reação da plateia quando Elis começa a cantar Começar de Novo. “Com o sucesso de público e de crítica, ela foi se soltando (no palco)”, diz a fonte.
Em crítica publicada no Estadão na época da estreia de Trem Azul, o musicólogo Zuza Homem de Mello escreveu que o show era uma “extraordinária récita vocal”. Zuza apontava certas “trepidações”, que se relacionou com os problemas relacionados a contratos com diferentes gravadoras e questões pessoais.
“Elis continua dominando facilmente o ofício que abraçou e pelo qual lutou muito. e que lhe deu o que ela tanto desejou. E ainda pode dar muito mais. ‘Agora quero voar’, ‘sou mais livre’, ‘quero ser feliz’, essas histórias fazem parte de um outro lance sempre presente na sua vida trepidante que porém deve ser mantida como sua somente”, diz o texto.
Zuza finaliza a crítica de forma quase profética: “O que se ouve é a voz, o que se vê é a cantora, o que se quer e ama é Elis Regina, é essa que ficará”