No último mês de julho, um comercial impressionou os brasileiros. Na campanha VW Brasil 70: O novo veio de novo, que comemora os 70 anos da Volkswagen, a cantora Maria Rita apareceu dirigindo um carro ao lado de sua mãe, Elis Regina – as duas cantavam Como Nossos Pais, de Belchior. O emocionante encontro de mãe e filha teve um detalhe: Elis, que morreu em 1982, teve sua imagem recriada utilizando inteligência artificial.
O vídeo, feito pela agência AlmapBBDO com autorização dos herdeiros de Elis, dividiu opiniões. Ao representar uma artista que não está mais viva sem sua permissão, uma dúvida permaneceu na cabeça de muitos espectadores: Elis aceitaria participar desse comercial?
Essa questão ética foi ao Conar semanas depois do lançamento do comercial. O órgão não-governamental, que fiscaliza a ética da propaganda veiculada no Brasil, se baseia no Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária e procura avaliar campanhas que possam ser danosas, abusivas ou enganosas.
Apesar de ser uma entidade autônoma, a ONG pode solicitar a alteração de um anúncio ou até que ele não seja veiculado novamente. As determinações do Conar são, portanto, respeitadas pelo mercado publicitário.
A campanha da Volkswagen foi levada ao órgão no dia 10 de julho, devido à queixa de consumidores, que levantaram a dúvida se houve “respeito à personalidade e existência da artista, e veracidade”. O julgamento é efetuado cerca de 45 dias após a abertura da representação. O Conar informou ao Estadão que a análise da representação ética da campanha está na fase final.
As aparências não enganam, não
A advogada Viviane Limongi, doutora em Direito Civil e professora na Escola Superior de Engenharia e Gestão de São Paulo (ESEG), é fã de Elis e comemorou a entrada do Conar no processo. Para ela, há várias questões éticas, sobretudo na criação de uma imagem até então inexistente: Elis nunca esteve em uma Kombi sorrindo e cantando para a gravação de um comercial da Volkswagen.
“A questão do ineditismo, para mim, é o principal ponto trazido por esse comercial”, conta. “Teriam os sucessores, como filhos da Elis, ou, ainda, herdeiros da Marília Mendonça, por exemplo, o direito de possuir plena e absoluta ingerência na memória, na imagem que o falecido deixou, sobretudo para criar conteúdo inédito?”
Viviane Limongi, professora da ESEG
Apesar disso, a professora ressalta que ainda não há legislação específica para esses casos e, portanto, é difícil confiar que a publicidade traçará um limite. “Os direitos autorais patrimoniais duram 70 anos. E servem para material produzido em vida”, reforça. “Não há relação com material inédito, a princípio”.
Nossos ídolos ainda são os mesmos
O comercial não contemplava somente um objetivo de marca: era também uma missão musical. Em postagem no LinkedIn, a Head de Música, Marcas, Produtos Digitais e Catálogo da Universal Music Group, Taísa Rennó, contou que o uso da canção de Belchior tinha exatamente esse fim: “reciclar os clássicos atemporais em novas cores e frequências para que se mantenham presentes e relevantes por mais muitas gerações”.
O uso dessa música na voz de Elis, tirada de contexto e de sua semântica original, também foi um incômodo para alguns espectadores da campanha.
Gustavo Victorino, Diretor Executivo de Criação na agência Africa, não considera que houve desrespeito no comercial.
“Acho que a Elis, se estivesse viva, faria esse comercial”, ele afirma. “Os filhos consentiram, a vibe era boa e coerente com a vibe da Elis ainda em vida”.
Gustavo Victorino, diretor de criação da agência Africa
Vale ressaltar que, mesmo com os levantamentos apontados, uma fração significativa do público da campanha concorda com Gustavo. “De arrepiar e sair lágrimas dos olhos”, comentou um internauta no YouTube.
Para Deh Bastos, diretora de Criação e Conteúdo e professora de criatividade na MBA da FIAP, essa reação se deve ao fato de que o comercial “segue uma fórmula infalível de fazer comercial de sucesso: música conhecida, cenas de relações familiares, cenas de nostalgia, memória afetiva”.
Portanto, é natural que o público tenha se emocionado – o que não significa que não seja necessário discutir, sob o ponto de vista ético, as implicações desse tipo de recriação.
Gente jovem reunida na parede da memória
Em 2020, nos Estados Unidos, uma organização de caridade “reviveu” o jovem Joaquin Oliver, uma das vítimas de um massacre escolar. O adolescente, morto aos 17 anos, foi recriado em vídeo usando inteligência artificial, e pedia aos espectadores que votassem em nome dele contra o porte de armas.
“Joaquin Oliver foi morto a tiros em 14 de fevereiro de 2018. Nós usamos Inteligência Artificial para trazê-lo de volta para uma última mensagem”, alertou o comercial.
Os pais de Joaquin, que aparecem no início do vídeo e manifestam a autorização da campanha, argumentaram que a mensagem era necessária. Eles também alegaram que o jovem, politicamente engajado desde novo, aprovaria esse uso de sua imagem.
Com a forte mensagem, o comercial recebeu críticas e elogios. Para alguns, o uso da tecnologia era “muito bizarro” e “passava dos limites”; para outros, era uma ferramenta que chamava a atenção necessária para o assunto.
A campanha é diferente do exemplo brasileiro por ter motivação óbvia: era um comercial ligado à causa da morte do adolescente, com fins políticos. Mas, no caso norte-americano, há diversos avisos de que a tecnologia foi usada e não se tratava da imagem real do garoto – o que não é o caso do comercial da Volkswagen.
Tô por fora ou tô inventando?
Nem mesmo esse aviso é um consenso entre os publicitários. Para Keid Sammour, diretor de Grupo e Estratégia na agência SOKO, o alerta do uso de IA é necessário. “O público tem o direito de saber como as informações e imagens que consomem são criadas”, ressalta. “Especialmente quando a tecnologia pode criar representações tão convincentes, que são indistinguíveis da realidade”.
Já Victorino discorda da necessidade de alerta. “Um aviso de inteligência artificial só estragaria a surpresa e a emoção do filme e não acrescentaria nada”, afirma.
Os dois concordam, no entanto, a respeito da funcionalidade da IA: é uma ferramenta, mas não a ideia.
“[A IA] serve como um ponto inicial de inspiração, seja para informações, temas, storyboards ou esboços de ilustrações, mas não como o produto final. Há preocupações legítimas sobre uso, autoria e direitos autorais”, acrescenta Keid.
“Tudo que é novo vai causar estranhamento. Acho que ainda é cedo para ter conclusões e muita coisa está sendo estudada. Mas a primeira coisa que a gente precisa é regulamentação, de legislação”.
Deh Bastos, diretora executiva de criação e professora da FIAP
Bastos acredita que a publicidade tem aspectos particulares. “Para mim, publicidade não é arte, porque publicidade precisa ser entendida por todos da mesma forma”, ressalta. Para ela, a área não permite interpretações distintas. “Nisso, há questões e pode ser que, por isso, tenham surgido as polêmicas”.
Você que ama o passado
Para alguns, outro caso não se distancia tanto do uso da imagem de Elis a favor da Volkswagen: um comercial da Brahma de 1991, em que Tom e Vinicius foram reunidos por montagem, já que Vinicius já não estava mais vivo.
Para Viviane, há limites mesmo nesse caso. “Se advier, por exemplo, alguma violação aos direitos de personalidade de Vinicius, seus sucessores podem, com todo o direito e fundados na proteção dos direitos da personalidade, ajuizar uma ação para impedir a violação dos direitos da memória da pessoa falecida”.
Os músicos e a IA: relação que também não se resolveu
Em junho deste ano, Paul McCartney revelou que estava trabalhando em uma nova música dos Beatles, com vocais de John Lennon refeitos com a ajuda da inteligência artificial. A declaração, que foi até mal interpretada na época, não se referia à recriação completa da voz de Lennon. Na verdade, era um uso que contemplava as vontades do músico, que morreu em 1980: seus vocais, já gravados, só teriam sido “aperfeiçoados” em qualidade com ajuda da ferramenta.
Viviane ressalta que, na música ou na publicidade, é essencial preservar a intenção de quem foi “recriado”. “O importante é manter a história da pessoa incólume, sem interferências de terceiros”.
A música encontrou outro obstáculo ainda neste ano: quando não há permissão de nenhum dos participantes e é difícil até atribuir autoria. Foi o caso da música viral Heart On My Sleeve, que fez uso da IA para “reproduzir” os vocais dos artistas The Weeknd e Drake. A versão, assinada por um usuário desconhecido, suscitou discussões mais profundas; não só passa a ser questão de propriedade intelectual, como de remuneração. Se uma música que não é de sua autoria viraliza com a sua voz, você tem direito ao lucro?
A multinacional que derrubou Heart On My Sleeve é a Universal, a mesma cuja sede brasileira tem no catálogo a faixa de Belchior usada no comercial da Volkswagen na voz de Elis. No caso da primeira, ainda que não hajam limites legais perfeitamente estabelecidos, há um entendimento de que o desejo dos artistas, vivos, não foi respeitado; no caso da segunda, a gravação de Elis existe e teve permissão dos herdeiros para ser utilizada – não é possível descobrir a vontade da cantora.
Para Limongi, novos limites terão de ser colocados também pelos próprios artistas. “A eles cabe, hoje, adotar medidas preventivas, anteriores à morte, para dispor sobre o uso de sua imagem. Madonna, por exemplo, já vetou qualquer utilização por meio de holografia”, afirmou.
Mas o que fazer quanto aos artistas que não tiveram essa oportunidade? Essa é a questão que órgãos diversos, como o Conar na área de publicidade, devem começar a responder. “A pessoa falecida, com toda a sua história e subjetividade, não pertence aos sucessores, de modo que eles não podem dispor dela como lhes convier”, reforça a advogada.
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