Já se repetiu à exaustão que, no reino das músicas improvisadas, a partitura é uma imprecisa bússola de navegação para os músicos. Aliás, na maior parte das vezes, a música impressa surge muito depois do fato genial, põe no pentagrama em minúcias cada grande solo improvisado – mais ou menos como o entomologista, cruel por natureza, espeta a agulha na borboleta para preservar sua beleza, tornando-a, porém e infelizmente, inanimada.
As grandes performances, portanto, constituem não só o legado, mas encarnam as obras de arte musicais. Neste ano pandêmico em que todo mundo teve de renunciar aos espetáculos ao vivo, sentimos ainda mais saudade do que a habitual dos grandes do jazz de 50, 60 ou 70 anos atrás. Criadores radicais que faziam do novo seu alimento diário e atendiam por Thelonious Monk (1917-1982), Ella Fitzgerald (1917-1996), Charlie Mingus (1922-1979), Dave Brubeck (1920-2012) e Sonny Rollins, este último o único ainda vivo e atuante, aos 90 anos.
De todos os citados, já se escarafunchou tudo que gravaram, mesmo que em péssimas condições técnicas. Esse é um garimpo que não termina jamais. 2020, neste sentido, foi pródigo.
Além dos “lost tapes” de um show de Ella Fitzgerald em Berlim em 1962 – o inédito histórico mais badalado na grande imprensa –, há outras gemas que não podem passar despercebidas. É o caso dos incríveis 47 minutos de música que o zelador de uma escola em Palo Alto, na Califórnia, gravou a pedido de Danny Scher, estudante de 15 anos que propôs e conseguiu promover em seu colégio, num domingo à tarde, uma apresentação do pianista Thelonious Monk e seu quarteto.
Corria o ano turbulento de 1968. Martin Luther King fora assassinado e a atmosfera racial era tensa. Pois Danny conseguiu unir brancos e pretos na mesma plateia. Monk at Palo Alto não é só mais um registro ao vivo do mais influente pianista de jazz do século 20. É um momento raro. Seu piano está mais extrovertido, solto. Seus improvisos em dois de seus clássicos, Well, You Needn’t e Blue Monk, mostram viagens harmônicas que passam longe da tonalidade principal, algo raro. Além delas, o quarteto toca a inefável balada Ruby, My Dear e Monk, sozinho, Don’t Blame me, canção de 1932.
Mingus, um dos maiores contrabaixistas e compositores do jazz moderno, também foi ativista da causa negra, Mais do que isso: transformou eventos terríveis, como a repressão a um motim na prisão de Attica, ordenado pelo então governador Nelson Rockefeller em 1971. Remember Rockefeller at Attica é uma das faixas presentes no segundo dos dois shows resgatados e lançados numa caixa com 4 CDs, agora em melhores condições técnicas. Circularam versões tecnicamente ruins destes shows de 1964 e 1975, ambos na cidade alemã de Bremen. Mingus provocava combustão espontânea em seus grupos nos quais brilhavam músicos excepcionais como Eric Dolphy, Don Pullen, Dannie Richmond, Jack Walrath e George Adams, entre outros. Amostra preciosa do melhor jazz dos anos 1960.
Na Holanda, eles entraram no palco sem nunca terem tocado juntos antes. E se afinaram instantaneamente. Ruud e Han eram fanáticos por Rollins. Conheciam muito bem seu repertório. E constroem improvisos à altura dos do explosivo mestre no auge de seus 36 anos. As quatro primeiras faixas, em estúdio, são impecáveis tecnicamente. As demais sete, ao vivo, são sofríveis, mas valem muito a pena. Não deixe de ouvir Sonnymoon for Two, de Rollins, e uma versão de mais de 20 minutos de Three Little Words, canção de Kalmar e Ruby, de 1930. Cá entre nós, aqui ele aplica tudo que o deixou embasbacado alguns anos antes nas delirantes guirlandas de notas de John Coltrane, como narrou Luis Fernando Verissimo, em sua crônica de 27 de dezembro, neste Na Quarentena.
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