Em Berlim, um grupo de músicos vizinhos se une para fazer concertos a partir de suas janelas

Com artistas de diferentes nacionalidades, eles tocam, sempre aos domingos, 'Ode à Alegria', de Beethoven

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OMS recomenda ventilação natural frequente na luta contra a pandemia da covid-19. Foto: Guilherme Conte

Um pianista finlandês. Uma cantora norte-americana. Um contrabaixista japonês. Um flautista, uma violista e dois violinistas alemães. Além de serem músicos profissionais que tocam em diferentes grupos, eles têm em comum o fato de viverem em um conjunto de prédios no bairro de Charlottenburg, em Berlim. Com apresentações canceladas por conta da pandemia, decidiram se reunir para tocar a Ode à Alegria, de Ludwig van Beethoven.

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Sempre aos domingos, os artistas aparecem em suas respectivas janelas e varandas para um concerto. Primeiro, ocorrem alguns solos e duos voltados para o pátio interno do edifício, com repertório variado. Depois, é hora de apresentar a composição de Beethoven para quem passa pela rua. Vez ou outra, um ciclista desacelera, e para pra ouvir. Uma mulher, do outro lado da via, arrisca alguns sons, tentando acompanhar a voz da soprano. E uma vizinha, sempre reclusa, abre uma fresta de sua vidraça só para ver e escutar. 

A ideia de unir os músicos, que, até então, não eram pessoas tão próximas, foi do flautista Jochen Hoffmann, integrante da Deutsche Oper e morador do terceiro andar. E a escolha do repertório foi oportuna – a emblemática Ode à Alegria, que integra a Nona Sinfonia, já estava sendo lembrada em homenagens aos profissionais da saúde, em outras janelas do país. 

“Eu sempre brinquei que a gente tinha de ter um projeto juntos. Então, quando Jochen me convidou para fazermos algo, eu topei na hora”, conta a violista alemã Julia Linder, que já se apresentou com orquestras como a Komische Oper e a Gewandhaus de Leipzig. “Eu fico realizada de ver o quanto isso traz de alegria aos vizinhos. Ao mesmo tempo, para mim, também é uma forma de cura pessoal neste momento tão triste, tão difícil.”

Partitura pregada à janela daviolista Julia Lindner, moradora do edifício. Foto: Guilherme Conte

A escolha da peça de Beethoven trazia, entretanto, um desafio. Era preciso um arranjo que contemplasse os instrumentos tocados pelos moradores do prédio. Foi aí que Julia e seu marido, o jornalista brasileiro Guilherme Conte, resolveram convidar para a tarefa o compositor Leonardo Martinelli, que vive em São Paulo. “A combinação de músicos era um tanto incomum”, observa Martinelli, que, naquele final de março, sentia a perda de duas importantes referências no meio da música clássica, vítimas da covid-19 – a maestrina Naomi Munakata e o maestro Martinho Lutero Galati. “Disse que faria, sim, o arranjo, até como uma forma de processar esse luto e honrar a causa artística desses dois maestros. Fiz em apenas um dia, tomado por sentimentos antagônicos”, relembra o músico, que, em dezembro do ano passado, estreou uma ópera sua no Theatro São Pedro, O Peru de Natal, baseada no conto homônimo de Mário de Andrade. 

Para Martinelli, apresentações artísticas mais espontâneas e informais como essas carregam outros significados. “São ações poderosas, pois estabelecem um tipo muito especial de conexão entre o artista e seu público. Não se trata mais de um simples lazer, de um programa a ser feito no fim de semana. É um exercício de luta e vida para todas as partes, seja o músico ou quem o escuta – procurando não apenas a música, mas um sentido de existência diferente, que não encontramos em concertos ou shows que íamos antes da pandemia.”

A soprano Sarah Fuhs cantando a partir da janela de seu apartamento. Foto: Guilherme Conte

Nas primeiras apresentações no condomínio, uma das dificuldades era os artistas ouvirem uns aos outros. Enquanto a soprano norte-americana Sarah Fuhs cantava no térreo, por exemplo, os instrumentos que a acompanhavam estavam três ou quatro andares acima. Além disso, o grupo não utiliza qualquer tipo de amplificação de som – exceto quando o finlandês Sami Väänänen, marido de Sarah, toca piano, já que o instrumento fica distante das janelas, no meio da sala. Para melhorar a sintonia entre os músicos, a saída foi Väänänen assumir o posto de regente, a partir do pátio do edifício. 

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Com o isolamento social, Sarah acredita que as pessoas têm ainda mais vontade de ficar conectadas com os outros. “Acho que artistas certamente podem ajudar a suprir essa necessidade, agora mais do que nunca – pode-se ganhar menos dinheiro, mas as recompensas emocionais provavelmente nunca foram tão intensas e gratificantes”, diz ela. “Shakespeare já sabia, e agora todos estamos experimentando isso: o mundo inteiro é um palco, incluindo o parapeito da janela.”

A orquestra de vizinhos já tem até nome – Homecastle Symphony Berlin – e acaba de ganhar um canal próprio no YouTube.

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