Um dos centros de ensino musical mais elogiados do País, com um raro conceito centrado na música brasileira e na formação técnica e humanística de jovens que vivem em bairros carentes de São Paulo, o Centro de Formação Musical do Auditório Ibirapuera teve seu segundo semestre de aulas suspenso e sem previsão de retorno. Os professores não terão os contratos de trabalho renovados e os alunos deixarão de ter as aulas da proposta pedagógica seguida pelo núcleo há quase 20 anos. A decisão foi tomada pela Urbia Gestão de Parques, empresa que assumiu a administração do Parque do Ibirapuera em outubro de 2020.
A notícia tem comovido a classe artística que conhece o trabalho do Centro. Ali, um corpo docente de excelência, como o saxofonista Nailor Proveta, o baterista Celso de Almeida, o acordeonista Toninho Ferragutti, o saxofonista Douglas Braga, a cantora Vanessa Moreno e os pianistas e coordenadores pedagógicos Debora Gurgel, Camila Lordy e Amador Longhini Jr., iniciam, desenvolvem e formam 140 alunos, com idades entre 12 e 18 anos, vindos de escolas públicas e de uma realidade de exclusões.
O projeto elogiado por especialistas oferece aos alunos a escolha do instrumento que querem tocar depois de seus ingressos no Centro. Os iniciantes têm espaço na orquestra pré Obinha, passam com o tempo para a Obinha e depois para a Oba. Os nomes de destaque são incorporados à Orquestra Furiosa, comandada por Proveta, um dos maiores nomes do instrumental brasileiro. Antes da pandemia, os jovens também recebiam bolsas integrais que iam de R$ 200 a R$ 600 (para os que chegavam à Furiosa), valores que foram cortados pela metade com a crise sanitária. Ao saberem da suspensão e da insegurança com relação ao retorno, cantoras que fizeram projetos especiais com os grupos se manifestaram nas redes sociais, como Fabiana Cozza, Zélia Duncan e Mônica Salmaso.
Procurada pelo Estadão, a Urbia diz que lamenta a suspensão das aulas e que o Centro não será fechado. Samuel Lloyd, diretor comercial da empresa, diz que percebeu a manifestação dos artistas nas redes e que a escola vai retomar as atividades, mas não disse quando. “A escola não vai acabar”, afirma. Os professores, no entanto, sentem-se inseguros depois que foram informados de que seus contratos de trabalho não serão renovados. “Se não vão acabar, por que desligaram os professores?”, questiona Amador Longhini. Eles têm como parâmetro a gestão anterior, realizada pelo Itaú Cultural. “Mesmo sob a pandemia e a suspensão, os gestores honraram os pagamentos dos professores e as bolsas dos alunos.”
Samuel Lloyd diz que manterá o valor de 50% da bolsa dos alunos e que a decisão da suspensão se dá por um conjunto de motivos que estava prejudicando, na sua avaliação, o desempenho dos estudantes. Um deles é a impossibilidade de os aprendizes levarem os instrumentos para casa, já que o seguro contratado não cobre o deslocamento. Outro, também segundo o diretor, é a falta de um sistema de aulas online eficiente. “Precisamos ter um CNPJ para usarmos a versão escolar do programa Teams, temos que estudar como fazer isso.” E, por fim, a insistência da pandemia. O diretor diz que não há como realizar aulas na escola de forma segura. “Queremos levar o projeto da forma como ele foi concebido”, diz.
Os professores rebatem os argumentos. “Meus dois filhos estão em aula online desde o início da pandemia. É um sistema ideal? Não, e algo se perde, mas é melhor do que zero. Tivemos um período de aulas online no Auditório, mas conteúdos foram produzidos e alunos se formaram”, diz Longhini. Com o acirramento da pandemia, os alunos passaram a receber 50% da bolsa e os professores tiveram também seus ganhos reduzidos em 50%, com as aulas cortadas pela metade. “Fizemos nesse tempo um esquema de planejar matérias e conseguimos chegar a cumprir entre 60% e 75% do programa, mesmo dando metade das aulas”, diz Longhini. “O que deve ser perguntado é sobre o impacto dessa decisão (da suspensão) na vida dos alunos. Nós mudamos a vida deles e agora eles estão sendo dispensados”, diz Debora Gurgel.
Samuel Lloyd faz uma avaliação sobre a visibilidade da escola. Para ele, o Centro não é conhecido pelas pessoas que não são da área musical. “Poucas pessoas sabem que existe a escola. Quando fomos falar sobre ela a algumas marcas (para uma possível captação de um patrocinador), não sabiam, ficavam surpresos. Ela precisa ganhar notoriedade.” A reportagem pergunta então se essa função, a de dar notoriedade e visibilidade midiática ao Centro, não seria da própria Urbia. Nas redes sociais da empresa, por exemplo, a escola não aparece. Não estariam perdendo a chance de ter ganhos como marca salvando um projeto de resistência cultural de excelência em dias de trevas? Não estão agora correndo o risco de perderem talentos formados há quase 20 anos por uma decisão de suspensão de aulas sem prazo de retorno? Foram duas perguntas que Lloyd respondeu em concordância, e voltou a prometer que a escola não vai acabar. “Temos um projeto para expandi-la.”
Com uma gestão de quase 9 anos lembrada como muito positiva pelos professores, mesmo em tempos da pandemia de 2020, Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural, diz o seguinte: “Eu quero acreditar que a Urbia possa cumprir o papel de gestora sob as três óticas que deram origem ao projeto: as atividades artísticas, o prédio e o Centro de Formação Musical”. Se não for por amor, pode ser por lei. O regulamento do parque, de 2004, deixa claro: “Entende-se por Auditório o conjunto edificado que contém sala de espetáculos, um centro de formação musical e o palco externo”. Um não deve existir sem o outro.
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