Opinião | Especial de Roberto Carlos: O que deu certo e o que não deu no possível último programa da Globo

O cantor comemorou 50 anos de seus tradicionais especiais de fim de ano com uma apresentação no Allianz - transformada no programa exibido nesta sexta, 20 -, e a incerteza sobre seu futuro na emissora; veja os pontos altos e baixos show

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Os mesmos botões da blusa, desabotoados para exibir o peito depilado (diferente do mostrado em outras décadas) e o medalhão, o terno branco, a estrutura capilar um pouco mais estranha a cada ano, o repertório bem parecido, as mesmas emoções... Mas foram elas, as tais emoções, que fizeram a diferença no especial de provável despedida de Roberto Carlos da TV Globo, exibido nesta sexta, 20, após 50 anos de ótimos serviços natalinos prestados. De olhos marejados, a tradicional família brasileira e a grade da emissora agora contemplam um vazio perturbador nos próximos finais de ano.

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Poderia ser uma protocolar conclusão de contrato (que termina oficialmente em março), repetindo escolhas seguras, surpresas previsíveis e o repertório que por cinco décadas seguiu a máxima do escritor italiano Tomasi di Lampedusa (“tudo deve mudar para que fique como está”), com oxigenações superficiais.

Mas a direção de Boninho, outro que está de saída da Globo, soube esquentar as imagens captadas no Allianz Parque em 27 de novembro, diante de 34 mil espectadores sentados. Além de trazer, a cada bloco, preciosos fragmentos picotados de especiais natalinos do passado, os cortes privilegiaram bons takes da banda do Rei, quase sempre também sentadinhos, mas passando a boa e honesta energia da música tocada ao vivo.

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O Rei escolheu começar claudicante, com a música que foi a segunda no programa do ano passado, Esse cara sou eu, de 2012. Foi o último grande sucesso dele, mas envelheceu mais rápido que quase todo o repertório, por ter sido identificada com comportamentos abusivos e relacionamentos tóxicos. Reverente aos próprios súditos, Roberto emendou dedicando a eles Como é grande o meu amor por você, carregando no tratamento “vocês”.

Roberto Carlos em seu especial de 50 anos na TV Globo; programa gravado no Allianz Parque foi ao ar nesta sexta, 20 Foto: Bob Paulino/TV Globo

E virou o jogo. O primeiro convidado a subir ao palco foi o melhor de todos: Gilberto Gil. Ele tentou puxar Roberto para uma inusitada síncope reggae, com Vamos Fugir; todo o Allianz Parque parecia conhecer a letra, menos o Rei. Depois, Gil saudou em carioquês espontâneo: “Quanto tempo, né, mermão?”.

E veio o biscoito mais fino da noite, A Paz, parceria de Gil com o gigante João Donato (1934-2023) que Roberto Carlos admirava há muito tempo. O Rei soube valorizar a melodia, reservando para o fim da canção uma intervenção à capella com a frase “invadiu o meu coração”. Apesar de vizinhos bem próximos na Urca, zona sul carioca, Roberto e o pianista genial nunca se encontraram para trocar figurinhas musicais.

Em seguida, a inevitável homenagem a Erasmo Carlos (1941-2022) levantou o programa, o estádio e o naipe de sopros: todos de pé, reverentes para frasear a assinatura melódica de Amigo. O primeiro clipe com imagens do passado, com convidados estelares como Tom Jobim, Pelé, Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gal Costa, exibidos como uma espécie de linha do tempo, preparou o terreno para outro monumento infalível do cancioneiro dos “brothers” Carlos, Detalhes.

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Zeca Pagodinho participou do Especial de Roberto Carlos na Globo Foto: Bob Paulino/TV Globo

Com texto esperto, Roberto anunciou o segundo convidado: “Todo mundo sonha em ter um amigo como ele, Zeca Pagodinho”. O sambista chegou com Deixa a vida me levar, acompanhado pelo onipresente e sempre competente Pretinho da Serrinha ao cavaquinho, extraindo tímidas intervenções do Rei (“vida leva eu”, de olhinhos semicerrados, ficou fofo). Depois, na segunda maior pérola da noite, Sonho Meu, de Dona Ivone Lara (com seu parceiro Délcio Carvalho), já estavam todos em casa. Afinal, o Rei pode não ser do samba, mas é do ramo — do canto popular brasileiro.

Com Chitãozinho e Xororó, ele deixou isso bem claro, na introdução que injetou em Evidências, provável campeão de audiência nos cortes que circulam pelas redes sociais.

Antes, com a turma do rock dos anos 80, reviveu o momento Jovem Guarda com a guitarra de Frejat e a bateria de João Barone injetando energia rockabilly. Rolou.

Com as atrizes Sophie Charlotte (de reconhecido talento vocal), Dira Paes e Letícia Colin, prevaleceu um clima de karaokê desigual, com charminhos e interações que bagunçaram a densidade da monumental canção Como vai você. Um pecado.

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Num tempo em que Caetano polemiza ao fazer acenos ao público evangélico, não deixou de ser irônico que o louvor católico Nossa Senhora tivesse se imposto com toda a majestade no roteiro, confrontando intolerantes de outras facções religiosas. Esse Roberto é uma brasa. Aos 83 anos, ainda capaz de dar suas carburadas melódicas, como provou ao entregar sua composição inédita, Vira-Lata, carimbada com assovio pop.

Sua eterna amizade crush, Wanderléa, parecia um tanto quanto descongelada ao surgir em um dueto mais simpático do que bem-sucedido em Na paz do seu sorriso. Ela confessou o nervosismo e sacudiu a poeira como uma diva highlander. Na canção seguinte, seu tema de assinatura, Ternura (versão de Rossini Pinto para Somehow it got to be tomorrow today, de Estelle Kevitt e Kenny Karnen) chegou junto do Rei, dominou a cena e a tela. Ficou bonito.

Na arrancada final, veio um momento frio, gravado em estúdio: L’Apuntamento (versão em italiano de Sentado à beira do caminho) dueto com o tenor pop Andrea Bocelli, em registro contido, quase à Julio Iglesias.

Não foi o melhor preparativo para a chegada do poderoso soul gospel Jesus Cristo, mas Robertão conseguiu: levantou astral e espíritos, já conduzindo para um gran finale meio apressado, com todos juntos no palco, entoando Emoções. Faltou um pouco mais de respiração e timing dramático, mas valeu muito a homenagem aos músicos e às vocalistas, devidamente creditados, antes da despedida, com as obrigatórias flores.

Quem chorou ou sorriu hoje pode dormir com a certeza de que esse adeus da grade global pode se transformar em até breve, em novos formatos. Nesta sexta-feira, 20 de dezembro, Roberto Carlos assinou contrato com a empresa Musickeria, de Luiz Calainho e Afonso Carvalho, com o objetivo de desenvolver novos projetos para sua carreira.

Opinião por Pedro Só

Jornalista especializado em música

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