Sonho que os empresários quiseram reviver 30 anos depois da realização do mais icônico festival de rock da história, o Woodstock de 1999 se tornou uma tragédia. Ao menos quatro jovens foram estupradas e muitos outros se feriram nas aglomerações que se criaram pelos três dias de shows. Sob um sol inegociável e uma sensação térmica de quase 40 graus, a única água gratuita que saía dos canos para refrescar quem lutava por qualquer faixa de sombra vinha contaminada por fezes. Inflamações estomacais eram comuns já no segundo dia. Para conseguir faturar mais com as vendas dentro do evento, os diretores mandaram os seguranças retirar qualquer líquido ou comida das bolsas de quem entrasse no local. Com um público de 200 mil pessoas confinadas no local – muitos dormiam em barracas para viver uma “experiência legítima” –, os organizadores podiam cobrar o quanto quisessem.
No terceiro dia, com fãs esgotados, famintos e raivosos, a bomba explodiu. Michael Lang, o homem que havia feito história em 1969, conseguiu ter a única ideia que não poderia ter naquele instante. Mandou distribuírem três mil velas para que os jovens as acendessem em nome da paz – não havia celular com os luminosos de hoje. Velas acesas – recapitulando – nas mãos de jovens ensandecidos e alterados por todo álcool, cogumelos e drogas que seus organismos haviam acumulado nos últimos dois dias. Assim que os shows da noite começaram, pouco depois de as velas serem acesas, fogueiras enormes eram vistas do palco. Garotos passaram a arrancar tapumes, destruir barracas e derrubar torres de som para abastecer o fogo, e tudo, que já não tinha controle nenhum, se tornou um inferno assim que os telões mostraram a imagem de Jimi Hendrix tocando o Hino dos Estados Unidos.
A série Grandes Fracassos: Woodstock 99, dirigida por Tim Wardle, bem fácil de se achar na Netflix, tem três episódios de pouco mais de 40 minutos cada que são impossíveis de serem abandonados até que toda a desgraça aconteça. É eletricamente tenso desde o início, e de uma tensão crescente, como se fosse roteirizada. Mas não. Tudo aquilo aconteceu mesmo, inspirado pela aura sagrada do primeiro Woodstock, o de 1969, quando 400 mil jovens que queriam o amor livre, o fim dos preconceitos, as libertações lisérgicas sem culpa e a retirada das tropas do Vietnã se reuniram, também por três dias, em uma fazenda na cidade de Bethel, na grande Nova York, para assistirem aos shows de Jimi Hendrix, The Who, Canned Heat, Santana, Janis Joplin, Joe Cocker e muitos outros. Apesar da falta de estrutura, não houve registros sequer de agressões. Mas, entre 1969 e 1999, os Estados Unidos, os jovens e o rock se transformaram em coisas bem diferentes.
Os Estados Unidos: Bill Clinton já balançava desde 1998 na presidência, e talvez no casamento com Hillary Clinton, depois das denúncias de ter mantido relações sexuais extra conjugais com uma estagiária de 22 anos da Casa Branca, Monica Lewinsky. E isso tudo, na própria Casa Branca. Não era bem esse o amor livre ao qual se referia o pessoal de 69. Mas a pior notícia veio um mês antes do festival, em 20 de abril: dois alunos, de 17 e 18 anos, chegaram à Columbine High School dispostos a aniquilar quem vissem pela frente. Com metralhadoras, explosivos, carros bomba e um plano cuidadosamente arquitetado, Eric Harris e Dylan Klebold mataram 12 alunos e um professor, além de ferir 21 pessoas. Depois de trocarem tiros com a polícia, atiraram contra as próprias cabeças na biblioteca da escola. Havia algo dando muito errado.
Os jovens: ao chegarem às instalações do Woodstock de 1999, na Base Aérea de Griffiss – e aí já temos um conflito ideológico: uma base aérea sediando um evento que era contra todos os soldados e bases do mundo –, tudo o que os jovens tinham em mente sobre 69 não era o rock que se fazia lá, mas algumas imagens reproduzidas pela mídia. Mulheres e homens nus, enlameados e dançando bem loucos. Era isso, basicamente, o que eles queriam reproduzir em seu Woodstock particular. Mas nada se reproduz sem a essência de um tempo, e tudo o que se tentou fazer baseado nessas imagens expôs o fracasso de uma geração. Ao tirarem as camisetas para mostrar os seios, como fizeram suas mães, meninas eram imediatamente atacadas por homens que, ao contrário de 1969, viam o corpo feminino exposto como uma permissão ao sexo. E um sexo brutal. Garotas eram erguidas em meio à multidão com os seios de fora para serem seviciadas. Quatro delas foram estupradas.
O rock: ao colocarmos lado a lado os artistas de 1969 e de 1999, vemos que a questão não é a qualidade maior ou menor da música dessas eras – uma discussão pertinente, mas não para se tentar puxar o fio que leva às novas relações sociais propostas pelo rock do pós 1990. O que fica mais claro é a transferência de eixo criativo do afeto ideológico coletivo dos anos 60 para a ira individual contra o mundo exterior dos 90. Os grupos de origem nos 90 passaram a injetar ira na medula do som. E mais poderosa do que a raiva dos punks dos anos 80 – uma raiva legítima e pungente, mas ainda política e controlada – a ira é o surto. Para uma geração que precisou ser controlada com remédios e terapia desde a infância, a liberdade do surto se tornou liberdade de expressão.
O alívio dessa alma vazia e escura e a promessa de viverem essa explosão juntos, e não isolados num mundo que não os entende, acabou se tornando um contexto de origem para grupos como Rage Against The Machine, Red Hot Chilli Peppers, Korn e Limp Bizkit, todos no line up do Woodstock de 1999. No show do Korn, os jovens começaram a pular as cercas de proteção; no Limp Biskit, passaram a derrubar as torres e a atacar as transmissões da MTV; e no do Red Hot, a queimar tudo. Então, as bandas e os fãs teriam culpa pelas notícias de selvageria? Não apenas, apesar de toda a suposta incitação à quebradeira feita pelas letras. Os grupos fazem outros shows no mesmo registro de ira e essas cenas não se repetem sistematicamente.
Por mais que destruir um mundo ouvindo Blind, do Korn, ou Killing In The Name, do Rage Against The Machine, tenha um sabor indescritível, o problema do Woodstock de 1999 não foi tão simples assim. Os sons das bandas e o comportamento sem limites dos fãs foram uma resposta potencializada à ganância dos adultos. Michael Lang, o principal deles, falou à série três meses antes de morrer, vítima de um câncer, aos 77 anos, em janeiro de 2022. Seu olhar era triste e sua voz parecia reconhecer seu maior erro: querer voltar a um lugar que não existe mais usando pessoas que jamais serão as mesmas.
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