O samba sem cor de Dona Ivone Lara acaba de ganhar uma de suas mais especiais interpretações. A cantora Fabiana Cozza, que no ano passado renunciou ao papel de Dona Ivone no musical que contaria sua história depois de ler comentários seguidos de ofensas nas redes sociais julgando-a não ser preta o suficiente para representar a sambista no palco, aceitou um convite da gravadora Biscoito Fino e fez Canto da Noite na Boca do Forno, um álbum com músicas de uma das mais importantes compositoras brasileiras. Por si, o disco é esplêndido, com um tratamento singular nas melodias de Ivone e na voz de Fabiana. Há pouca marcação rítmica, a instrumentação está nos detalhes e, assim, tudo fica maior e mais evidente, transpassando quem ouve com uma verdade de silêncios arrebatadora. Por tudo o mais, o álbum é uma resposta do tempo.
Há um efeito imediato com a extração da sessão rítmica. A voz de Fabiana, conduzida pelo violão de Alessandro Penezzi, sobe e brilha, transbordando na dor que os dias que a castigaram deixaram em sua fala. O silêncio soa mais alto que o grito, como em uma oração, e Enredo do Meu Samba ganha a intenção certa. Aquilo é triste, mas ninguém havia pensado em interpretar assim: “Não entendi o enredo desse samba, amor / Já desfilei na passarela do teu coração / Gastei a subvenção do amor que você me entregou / passei pro segundo grupo e com razão.”
Alguém me Avisou é outro redimensão da importância de Dona Ivone. Sem as turbinas do surdo e o calor dos tamborins, fica o verso de Fabi e o lirismo de Penezzi. “Foram me chamar, eu estou aqui o que é que há...” Algo tão entranhado no brasileiro branco, pardo e preto, em qualquer grau de melanina, que o afeto da memória leva quem ouve para o lugar que ele desejar, à revelia até mesmo da força calorosa da convidada Maria Bethânia.
A abertura parece algo escrito pela própria Fabiana, e talvez seja mesmo o recado. Dona Ivone diz assim, ao lado de Délcio Carvalho, na letra de Meu Samba é Luz, é Céu, é Mar: “Quero arrancar da minha mente / Tristeza, saudade / Quero espalhar pra toda gente / a minha verdade / Quero soltar, enfim / a alegria que existe em mim / Que querem sufocar / lentamente até matar”.
Fabiana Cozza sangrou para que, à parte dos fomentadores do ódio sem critérios, uma discussão delicada viesse à tona. Assim que decidiu deixar o elenco do musical Dona Ivone Lara – Um Sorriso Negro, ela escreveu uma carta e a divulgou no calor dos ânimos. “O racismo se agiganta quando transferimos a guerra para dentro do nosso terreiro. Renuncio hoje ao papel de Dona Ivone Lara no musical após ouvir muitos gritos de alerta – não os ladridos raivosos. Aprendo diariamente no exercício da arte – e mais recentemente no da academia, sempre com os meus mestres – que escuta é lugar de reconhecimento da existência do outro, é o espelho de nós.”
Algumas pessoas passaram a bombardeá-la com mensagens raivosas por entenderem que Fabiana tentou representar no palco uma mulher com a pele de pigmentação mais escura que a dela, em uma espécie de desvirtuamento genético. O colorismo mostraria como as pessoas de pele mais escura sofreriam preconceitos maiores. Em outras palavras, quanto mais preto, maior o preconceito. E as ameaças chegaram. “Estamos de olho em você, presta atenção, cuidado com suas escolhas daqui pra frente”, foi o teor de algumas. Fabi se recolheu. “Quando li aquelas pessoas pedindo que eu saísse do espetáculo, fiquei abalada.” Ela acabou embarcando para Cuba, para um concerto já marcado na Escola Superior de Arte, e teve o abraço que precisava. Havia acabado de lançar um álbum com a obra do pianista cubano Bola de Nieve, Ay Amor, e recebeu um carinho que não esperava. “Aquilo foi meu refúgio afetivo. Acabei amando ainda mais aquele país.”
Antes de ser convidada para o fazer o musical, Fabiana já havia cantado a obra de Dona Ivone em 2005, com o mesmo Alessandro Penezzi, um especialista no assunto, no Sesc Santo André, e em 2006, ao lado da própria Dona Ivone, em outro projeto chamado Quebrada Cultural, em que um artista consagrado abençoava um emergente.
Ao voltar ao Brasil, o assunto ainda ecoava, e veio um convite solidário da gravadora Biscoito Fino. “As portas estão abertas para um disco sobre Dona Ivone Lara.” Fabiana ficou em silêncio por um tempo. “Eu havia sido tirada do lugar que construí como mulher negra.” Foi aos amigos, à família, falou com sua empresária e consultou os orixás. Gravar Dona Ivone Lara, a mulher se armou com sambas de amor contra qualquer forma de segregacionismo até sua morte, aos 96 anos, em 2018, já não era mais uma escolha.
O episódio ainda rende. “Eu não culpo os movimento negros, isso sempre foi coisa de extremista”, diz Fabiana. Acadêmicos abriram rodas, pesquisadores passaram e olhar para a questão e pessoas da comunidade artística se manifestaram. O rapper Emicida deu uma entrevista. “Uma pessoa que está lutando há 20 anos sozinha pelo samba ter a etnia contestada por quem não a conhece? Essa menina está lutando em nome dos orixás por 20 anos!” O professor congolês Kabengele Munanga, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, com mestrado em Antropologia na USP, desenvolveu sua resposta ao jornal A Tarde. “O que acontece é que algumas pessoas não têm consciência do conceito de negro. A definição de negro no Brasil é política... E agora, os próprios negros estão se dividindo entre eles.” E a professora Diva Moreira fez uma explanação em um canal no You Tube: “As pessoas miscigenadas foram convidadas por nós do movimento negro no censo de 1991 para se declararem negras. Falávamos a elas: ‘Não deixe sua cor passar em branco, responda com bom senso, pense e se declare como pessoa negra’. Como ficamos agora com relação a essas pessoas?” Quanto ao disco de Fabiana Cozza cantando Dona Ivone Lara, ninguém ainda manifestou indignação por conta de legitimidades cromáticas. Quem sabe um despertar? O samba de Dona Ivone, assim como sua alma, nunca tiveram cor.
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