Não são mais os anos 80, mas a busca por vitrolas e pelos discos de vinil se tornou uma tendência crescente entre os brasileiros durante 2023. A prova disso foi o crescimento de 136% no consumo de LPs em território nacional no ano, segundo levantamento realizado pela Pro-Música Brasil.
A estatística relevante contribui para o crescimento sequencial do mercado fonográfico brasileiro, que pelo 7º ano consecutivo registrou um aumento positivo, atingindo no ano passado o valor total de R$ 2,8 bilhões. As cifras colocam o Brasil como o 9º maior mercado fonográfico do mundo, de acordo com o ranking da Federação Internacional de Produtores Fonográficos (IFPI).
Por mais que as vendas físicas representem apenas 0,6% do montante total, esse é o maior patamar atingido pela indústria da música como um todo desde 2018, com faturamento individual de R$ 16 milhões e crescimento de 35,2% em relação ao ano anterior.
Ao analisar globalmente, o Brasil segue uma tendência vista em outros países, como o Reino Unido, que tem o 3º maior mercado musical do mundo, segundo o IFPI. Um levantamento da Key Production, uma das maiores empresas britânicas de prensagem de discos de vinil, mostra que 59% dos jovens entre 18 e 24 anos escutaram lançamentos musicais em formatos físicos, contra uma média de 40% de adesão de um público entre 25 e 65 anos. O mesmo levantamento mostra, ainda, que 71% das pessoas da geração Z pagariam mais caro se os LPs fossem produzidos com impacto reduzido ao meio ambiente.
Para a pesquisadora do mercado fonográfico, socióloga e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Marcia Tosta Dias, o crescimento da mídia física entre os brasileiros é explicado por um conjunto de fenômenos que reúnem fatores culturais e técnicos do próprio mercado musical.
Segundo Marcia, o mercado dos discos não é movimentado por um único tipo de público. Tanto os “novos fãs”, que não tiveram contato com o disco de vinil como uma mídia habitual de consumo, como os próprios ouvintes de gerações anteriores conseguem ter participação efetiva nesse mercado. Porém, os públicos mostram comportamentos diferentes no ato do consumo.
“Os consumidores mais antigos de vinil são mais reticentes. Isso porque existe, sim, uma diferença técnica final do produto com relação ao que era produzido até então como vinil, e que hoje é alcançado apenas via sebos e lojas especializadas. É um consumidor que será mais reticente com as novas tiragens do que os fãs mais novos”, explica. Além disso, há um público classificado por ela como “aficionado”, que se preocupa com características técnicas presentes nas mídias físicas, e que é, segundo Marcia Tosta, um comportamento muito específico de quem consome o modelo físico de música.
São pessoas que estão interessadas na qualidade do som, na atmosfera de estúdio, são pessoas que são aficionadas pelo formato, mas pela música, pelo processo de produção, por tudo que está envolvido aí no processo de gravação.
Marcia Tosta Dias, pesquisadora do mercado fonográfico
A experiência de consumir o áudio que sai da mídia física ainda agrega dois fenômenos colocados quase como opostos ao que é oferecido pela experiência dos streamings e plataformas online de música. Uma delas é a sensação de perder os limites estabelecidos pela música, isso por conta da “descoberta musical”, como ela define.
“A descoberta musical também surge com as plataformas. Se você procura alguma coisa que está fora dos mais acessados, aquilo já pode ir te trazendo outras coisas. Mas esse é um movimento setorializado, isso faz com que outras novidades do mercado (singles e álbuns) passem a chamar atenção e interessar as pessoas”, completa.
A socióloga também levanta que a alta do consumo por mídias físicas também pode ser explicada pela busca por uma experiência diferente do dia a dia. Quando se fala de escutar um LP, é preciso passar pelo processo de escolha do álbum, qual lado do disco e o encaixe na vitrola. E é neste momento que Marcia entende haver uma magia envolvida, a curiosidade de entender como que o toque da agulha da vitrola no vinil produz os sons ouvidos pelas pessoas.
Os aparelhos que reproduzem a música dos discos de vinil também registraram um aumento significativo nas vendas entre 2023 e 2024. Na plataforma de marketplace Mercado Livre, o comércio de vitrolas cresceu 55% no primeiro trimestre deste ano em comparação com o mesmo período do ano anterior.
“O que tem no vinil e que precisaria ser considerado, mas é um pouco difícil de entender, é um tipo de magia no disco. É aquele mistério de entender como a agulhinha que passa naquele material tira de lá uma orquestra sinfônica tocando na sua mais perfeita sonoridade. Por mais que a gente entenda tecnicamente, continua sendo um mistério”, reflete Marcia.
Por que os discos de vinil são tão caros?
O crescimento do mercado de mídia física indica uma tendência de mudança parcial de comportamento de alguns dos consumidores, donos agora de um olhar mais interessado para CDs e LPs. Os números, no entanto, ainda mostram não existir indícios de uma troca total do digital pelo modelo físico. O levantamento desenvolvido pela Pro-Música Brasil mostra as plataformas de música ainda mantém uma larga vantagem em comparação com outras linhas, como responsáveis por 87% da receita total do setor musical no País.
Com crescimento de 14% em comparação ao último ano, os valores chegam a R$ 2,5 bilhões apenas considerando o recorte dos streamings. Ao analisar as receitas só das plataformas de áudio, como Spotify, Deezer, Apple Music, YouTube, Napster, Amazon Music, entre outros, a soma do faturamento chega a R$ 1,6 bi apenas em assinaturas de usuários, com aumento de 21,9% em comparação a 2022.
Para além do fator de existir um limite nos discos por serem uma tecnologia antiga, os LPs ainda são vistos no mercado musical como um artigo de luxo. Marcia Tosta reforça que os preços por unidade afastam parte do público que poderia ser convertida como consumidores frequentes desses artigos. Outra explicação levantada para sustentar os altos valores se deve ao processo de destruição de parte da linha de produção dos discos de vinil em determinada época. “A fragilidade da produção e da forma como o mercado se organiza deixou esse processo de destruição muito arbitrário a ponto do consumidor achar que era possível substituir totalmente uma coisa por outra, e aí joga tudo fora”, diz.
O descarte de parte desses artigos deu aos itens uma chancela de exclusividade e raridade, impactando diretamente no seu valor. Portanto, no mercado consumidor, o público que acessa os discos também é mais restrito. “Vai ser muito difícil, de repente, a grande indústria decidir que cada álbum que se lança em formato digital, lançar também um vinil. É uma possibilidade muito irrisória.”
Por que os discos de vinil fazem mais sucesso que os CDs?
A essa altura você já deve ter se questionado sobre o fato dos discos não serem o único tipo de mídia física para consumir músicas. E não é nem a mídia mais recente que, em teoria, é mais compatível com o que existe de tecnologias mais novas, como é o caso dos CDs, que são o ‘boom’ do momento. Mas os primos pequeninhos dos LPs não fizeram, nem de perto, o mesmo sucesso dos discos de vinil. Ao analisar a pesquisa da Pro-Música Brasil, é possível ver que os CDs apresentaram uma queda no número de vendas de um ano para outro, e perderam o topo da lista para os ‘bolachões’.
Em 2021, os CDs correspondiam a 57% das vendas de mídia física de música no País, contra 19% dos vinis. No ano seguinte, a porcentagem se manteve para o formato do CD, enquanto os discos mais que dobraram e atingiram 40% do volume de vendas. No último ano, enquanto o vinil assumiu o posto de mídia física mais vendida, com 60%, os CDs apresentaram forte queda, caindo para 30% do total do comércio no setor.
Mas afinal, o que explica essa diferença de hype entre os dois modelos? Além dos fatores de comportamento e mercado, ligados às promoções da nostalgia, a pesquisadora Marcia Tosta destaca que a própria experiência entregue pelos CDs não perdurou o suficiente para convencer a maioria dos consumidores.
A experiência passa, por exemplo, por algumas “promessas” feitas do que seriam os CDs. Composto de policarbonato metalizado, os itens chegaram ao mercado com a ideia de que sua estrutura, por ser menor, teria muito menos chance de ser arranhada e, consequentemente, estragada. Além disso, sua embalagem ‘mini’ mudou, e muito, a concepção das artes e das informações fornecidas pelos artistas e bandas naquilo que é considerada a porta de entrada para os produtos: a capa e o encarte.
“O que o CD trouxe consigo foi uma grande caixinha de surpresa. [...] Mas o som dele é muito diferente em termos de qualidade comparada com o vinil. A ideia de que ‘ele não risca’ é absurda; tem uma durabilidade baixíssima. Uma embalagem problemática e ninguém deu uma solução. Até as informações das obras tinham que ser lidas com lente de aumento. Essa ruptura é abrupta”, destaca Marcia, ao relembrar de algumas das muitas vezes que a parte interna ou bordas das caixas de CD quebraram por queda ou excesso de força.
As empresas ganharam horrores, foram para o topo dos mercados mundiais. No final dos anos 1990 e começo dos anos 2000, o Brasil era um dos maiores mercados de discos.
Marcia Tosta Dias, pesquisadora do mercado fonográfico
Ainda lembrando da experiência de consumo, o próprio som emitido pelos dois formatos tem características diferentes. Com a promessa de ter um som mais limpo que o vinil, o CD tem uma qualidade de alta definição, diferente do famoso chiado emitido pelos LPs. Para parte do público, há uma grande perda na experimentação daquele conteúdo musical, como se o chiado fosse uma marca registrada e obrigatória em qualquer som que sai da vitrola.
E quem compra CDs hoje em dia?
Há quem ainda represente a resistência do primo dos LPs. Augusto Alvarenga, de 28 anos, soma mais de 150 álbuns em sua coleção de CDs. O mineiro, que durante um tempo também colecionou vinis em uma das várias prateleiras do seu quarto, viu o preço dos discos como a principal barreira para continuar crescendo sua coleção. Isso abriu espaços para mais CDs, que também eram um amor antigo herdado a partir das viagens de carro com seu pai.
Dono de um aparelho de som com bandeja tripla da Philips fabricado no começo dos anos 2000, o escritor e roteirista conta que já passou por alguns problemas em relação ao uso do CD Player. “É um caos. Uma vez ele estragou a bandeja tripla, que rotaciona, e meus discos ficaram presos lá dentro, foi um desespero. O som ficou encostado um tempo por causa disso”, lembra. Entre as várias soluções para o problema, Alvarenga chegou a plugar uma vitrola nas caixas de som para ter a “experiência do impacto do som”, como ele define, mas deixou de lado ao parar com a coleção de discos.
Hoje, o seu rádio Philips dos anos 2000 funciona graças a uma gambiarra com outro aparelho de som, e o escritor apenas torce para que nada de ruim aconteça com o companheiro de tardes musicais.
Com uma coleção variada, de clássicos dos anos 2000 como Madonna e Mariah Carey, até nomes atuais como Billie Eilish, Alvarenga conta que a maioria das suas aquisições vem dos sebos. Nem as tradicionais lojas de varejo do Brasil que tinham centenas de CDs em cestas nas entradas dos estabelecimentos estão colaborando com os colecionadores de CD. Nas lojas de usados, inclusive, alguns itens novos são disponibilizados por preços acessíveis para os consumidores.
E se Augusto Alvarenga ou qualquer outro entusiasta das coleções de CD espera ver as miniaturas de disco desfilando no hype por aí como acontece hoje com os vinis, é melhor não criar tanta expectativa. Pelo menos é o que os estudos produzidos por Marcia Tosta, da Unifesp, apontam a partir do cenário da indústria fonográfica. A especialista diz que não vê a possibilidade de, daqui alguns anos ou décadas, os CDs roubarem esse espaço ocupado hoje pelo LP.
“Acho que tem uma diferença cultural entre o vinil e o CD. Este último não conquistou essa dimensão cultural. Ele não trouxe inovações culturais, estéticas ou musicais. Se pensarmos na década de 1990, por exemplo, onde há a chamada substituição do vinil pelo CD, que cresceu e se consolidou, foi uma substituição muito relativa e parcial”, destaca a professora.
Na visão dela, o mercado viveu um ‘gap’ cultural até que grandes obras de artistas passassem a ser produzidas apenas em CD, e não nos dois formatos, o que sempre deu vantagem ao vinil. A própria ação de colocar o disco e o CD para tocar é diferente. Enquanto a vitrola mantém a curiosidade viva por convidar o usuário a entender seu funcionamento, o CD Player engole a miniatura e a “magia” que faz o som sair fica distante dos olhos das pessoas.
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