Aquilo tudo parecia diversão, e também era. Música pop de refrão imediato, colorida, vigorosa, transbordante e que soava própria para programas família dos anos 1980, como Fantástico e Cassino do Chacrinha. As entrelinhas diziam mais. Como o Cavalo de Troia que leva algum tempo para revelar suas intenções depois que conquista todos os territórios, a Gang tinha um discurso cheio de armadilhas que ainda não deixou de fazer sentido. Ouvir a Gang 90 hoje pode ser ainda mais poderoso do que na década que ajudou a inaugurar, a de 1980.
A rápida história antes do pulo de 30 anos: o DJ Julio Barroso, carioca morando em São Paulo, veio de uma temporada vivendo em Nova York com informações do que acontecia de mais moderno pelo mundo pop. Havia já a grande onda puxada pelo B-52 e pelo Talking Heads desde 1975. A era da sisudez estética havia acabado e uma euforia criativa e ensolarada mostrava que podia ter seu lugar no palco sem recorrer à ingenuidade dos anos 1960, recriando uma forma de protesto. E havia lugar no Brasil para isso.
Perdidos na Selva, feita por Barroso e Guilherme Arantes, veio primeiro em um compacto simples, um pouco antes do estouro definitivo de 1981, no Festival MPB Shell. O ginásio do Maracãnazinho, assustadoramente lotado e sem nenhum artifício de telões nem luzes coloridas, levava a banda de Barroso, uma liderança natural diante das meninas das Absurdetes, de pequenas casas de rock para o País. Perdidos na Selva tem uma história interessante. Guilherme Arantes é coautor da música, com Barroso. Mas, por estar concorrendo no mesmo MPB Shell com Planeta Água, não podia dizer isso a ninguém e acabou não assinando a autoria. Perdidos na Selva não ficou entre os três finalistas e Planeta Água perdeu para a música Purpurina, defendida por Lucinha Lins. O anúncio rendeu uma das vaias mais estrondosas dos festivais.
Depois de quatro discos, o último deles em 1987, já sem Barroso, morto em 1984, e muitas formações (Lobão, Wander Taffo, Gigante Brasil e Lee Marcucci entre eles), o grupo foi desativado. Trinta anos depois, a tecladista Taciana Barros, que entrou no susto, aos 17 anos, a convite de Barroso quando fazia um show em uma casa de rock de Santos, religa as chaves e coloca o grupo em estúdio para ensaiar. Serão dois shows que podem virar disco e que serão gravados em vídeo. Os shows serão hoje (23) e amanhã (24), no Sesc Pompeia.
A formação é algo que importa. Como a Gang 90 dos anos 1980, a de 2019 é também uma fotografia do seu tempo. E esses são os seus soldados, convocados de épocas diferentes: a própria Taciana Barros, na voz e piano; Herman Torres, voz e guitarra; Paulo Lepetit, baixo; Gilvan Gomes, na guitarra; Beto Firmino, teclados e voz; Tiago Frúgoli, teclados; Tamima Brasil na bateria e Bianca Jordhão e Elô Paixão nos vocais. Lucio Maia, guitarrista fundador da Nação Zumbi, é uma peça nova e importante na atualização do som. Outros três nomes aparecem como participações especiais: Edgard Scandurra (que produziu o terceiro álbum da banda), o cantor
Filipe Catto e o cantor e compositor Rodrigo Carneiro. Curioso como Rodrigo e Taciana se cruzaram com a mesma ideia, como ela conta. “Ele me procurou para reativarmos o grupo e eu disse que estava fazendo a mesma coisa e inverti o convite a ele.” O nome dos shows é Nossa Onda de Amor Não Há Quem Corte e o repertório, claro, terá canções dos discos Essa Tal de Gang 90, Rosas & Tigres, Pedra 90 e Quero Sonhar com Você. Algumas inéditas foram criadas para o reencontro e, nas duas noites, será lançado o livro A Wave is a Wave, organizado por Natália Barros, com textos e ilustrações inéditas de Julio Barroso. “Vamos ter alguns momentos de poesia, para os quais a voz do Rodrigo ficou perfeita”, diz Taciana. Elas serão retiradas do livro A Vida Sexual do Selvagem (lançado pela editora Siciliano em 1991) e da revista Música do Planeta Terra (editada e lançada por Barroso em 1975). Entrarão também alguns poemas inéditos.
A Gang 90 mais pop, de Nosso Louco Amor, tema da novela Louco Amor, da Globo, 1983, e a mais underground, de faixas que não emergiram com a mesma força, tem terreno fértil entre as novas gerações, como diz Taciana. “Sobretudo pelo Julio Barroso. Os mais novos começam a conhecer sua história.”
Barroso é descrito por quem conviveu com ele como um gênio. Jornalista, escritor, de coração gigante e uma disposição para brincar com o perigo sem limites. “Era um beatnik, de levar pessoas que moravam na rua para a casa e dar banho. Chegava com os discos de Nova York que não tínhamos e era uma sensação para todos.” A Gang de Julio e Taciana fundou o rock dos anos 1980, como diz Lobão. Abriu ali a tradução mais perfeita da new wave em português e de uma longevidade que enganou todo mundo fingindo que havia acabado.
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