É inevitável analisar a recente decisão de Gilberto Gil de se aposentar dos grandes shows em 2025 sob o prisma de sua canção Tempo Rei, lançada em 1984. “Não se iludam, não me iludo/Tudo agora mesmo pode estar por um segundo”. A impermanência, que aparecem nesses versos de uma de suas músicas mais famosas, sempre fascinou Gil, principalmente por ele ter sua mente sempre voltada às filosofias orientais.
Gil conversou com o Estadão sobre sua “outra atitude diante do fenômeno musical”, como ele prefere definir, no último dia 8, quando esteve na Fábrica de Dengo, na região da Faria Lima, em São Paulo. O cantor foi homenageado com o lançamento da linha de embalagens para os chocolates da marca inspirada no livro Andar com Fé, de Daniel Kondo. A publicação, voltada para as crianças - os adultos também vão gostar de ver - , homenageia o cancioneiro de Gil com ilustrações sobre suas músicas, revelando, dessa maneira, o processo criativo do compositor.
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Na ocasião, Gil autografou uma tela de 2,30 por 1,50 com uma das ilustrações criadas por Kondo. O quadro, assim como outros, em menor tamanho, ficarão expostos na cafeteria da Fábrica de Dengo até o dia 17/08, gratuitamente.
Com a serenidade habitual, e com um brilho nos olhos de quem contempla o recolhimento com o mesmo entusiasmo da apresentação de uma nova composição, Gil falou sobre sua percepção sobre o mercado musical, a despedida da geração chamada MPB e a preocupação com o uso da inteligência artificial na música.
Assim como outra de sua canção que passeia pelo tempo, Flora, Gil parece agora querer contemplar, pelo chão, “muitos caroços/ Como que restos dos nossos/Próprios sonhos devorados/Pelo pássaro da aurora.
Recentemente, você divulgou que deve fazer sua última turnê em 2025. É isso mesmo?
Sim, de grandes turnês, será a última.
Como que isso foi pensado, Gil?
Eu acho que é a hora de dar uma freada nesse processo que se tornou regular de excursões sucessivas e intensas. Por causa, especialmente, do tempo. A passagem do tempo mesmo, a idade, a necessidade de ficar em casa, [ter] dedicações outras, [ficar] mais dedicável a outras coisas e não só a essa exigência da aceleração [da rotina de shows]. E as próprias contingências de mercado. Eu não sou mais um artista da vez, não é? Minha vez, nesse sentido do grande interesse mercadológico, já não é. Então, se acumulam vários fatores. E aí , pronto, a partir de 2026, eu já fico com outra atitude diante do fenômeno musical. Do artista, enfim. Quero continuar fazendo música normalmente. Eventualmente também ainda me apresentando, mantendo uma relação mínima com o público, mas uma relação mais calma e menos robusta.
E, na sua cabeça, é tranquilo esse processo?
É. Esse processo todo? É da minha cabeça que sai...
Como foi tomar essa decisão, Gil? Porque não deve ser fácil. Você é um cara de palco, sua música se dá muito nesse espaço. Quer dizer, você também faz a música no palco...
É uma reflexão natural produzida pelo tempo, pela passagem do tempo, pelo dispêndio de energia, pela observação da minha inserção no mundo como artista. Essa decisão foi facilitada por isso, foi inspirada por esses vários elementos de ponderação.
Era algo que você via amadurecendo ou deu um clique repentino?
Não, já vinha amadurecendo. Especialmente porque o trabalho intensivo, extensivo e intensivo, exigido por essa dimensão mercadológica prevalente é muito consumível.
Eu sempre tive um pouco essa atitude de buscar o menor esforço para tudo
Gilberto Gil
Na apresentação no Lollapalooza [em abril deste ano] você mostrou um vigor impressionante.
É, mas é um vigor para o qual já é necessário muito esforço físico. Não só físico, mas mental, espiritual, de linguagem. Nesse sentido da espiritualidade como linguagem, já é um esforço. E uma das coisas que eu acho que a idade, a vida em geral, a vida desde sempre, desde cedo, mas ,especialmente, nas fases mais tardia do viver, é adotar a lei do menor esforço, de uma coisa que se torna mais natural. Eu sempre tive um pouco essa atitude de buscar o menor esforço para tudo. Nesse caso, então, é muito natural, se torna mais necessário.
O prazer de estar no palco diminuiu?
Não, o prazer não, é o mesmo! Mas o fato do prazer ter que ser dividido com a ocupação já entra um outro elemento. É um outro ponderável.
Haverá disco novo? O que você vai preparar para essa turnê?
Disco novo não, não. Hoje em dia não são feitos mais discos como eram feitos antigamente, com 12, 14 músicas. O padrão das 12 músicas, as seis lados A, as seis músicas do lado B. Fui gravar uma coisa com o [rapper] Hariel. O que é? É um disco? Não, é um audiovisual, não é mais isso, não é mais aquilo. Então, eu deixei um pouco de lado essa preocupação que era constante, que era permanente para os artistas anteriores e da minha geração, e mesmo alguns posteriores, que era isso de ter a feitura do disco. Hoje os meninos [novos artistas] fazem uma música, duas no máximo, e lançam daqui a dois, três meses. Seis meses depois lançam mais outras e, eventualmente, compilam um produto final. Não estou pretendendo, não me veio como preocupação, fazer um disco para turnê ou qualquer coisa desse tipo. Eventualmente duas, três canções novas aparecerão aí para tratar de um ou dois assuntos, dois temas. Um deles a própria questão do final do ciclo, mas não tem um disco feito para isso.
Milton Nascimento parou. Nana Caymmi parou. Você vai parar. Caetano talvez pare...
Sim, sim, Caetano está neste caminho...
Rita Lee, Gal Costa e João Donato não estão mais aqui. Esse momento talvez seja o de maior transformação da chamada MPB nos últimos 60 anos...
Talvez seja. Atende a um sentido cíclico das coisas. Um ciclo que se encerra.
Você sempre falou sobre a finitude, Não digo apenas sobre a finitude da vida, mas das coisas, da impermanência. Isso te ajudou a chegar sereno nesse momento de decisão?
Essa constatação natural de que tudo que tem um começo tem um fim é um dos princípios do taoismo, não é? Na filosofia oriental tudo é muito natural, muito...Organicamente, adotei, entendi, compreendi e adotei isso para minha vida. Então, é um processo todo muito natural para mim. Ficar mais em casa. Não me submeter tanto a esse empenho [da carreira]. Esvaziar um pouco a vida do sentido do esforço para as coisas. Para que elas se imponham mais por elas mesmas, pelo seu fluxo natural, e não por um exercício da vontade. Tem a ver com o amadurecimento também, com a transmutação de uma vida mais calcada no material para uma vida mais fincada no espiritual. O que é uma coisa mais ligada ao sentido de plenitude.
Quanto menos intensidade tiver a vida artística, a vida musical, menos intensidade terá também todos os outros campos de manifestação
Gilberto Gil
E Gil, tem “ok, ok, ok, já sei o que vocês querem a minha opinião [trecho da letra da música Ok, Ok, Ok, de Gil]. Você e Caetano Veloso sempre foram muito solicitados a dar opiniões sobre vários assuntos. Política, meio ambiente, cultura...Você pretende continuar a atender esses pedidos?
Sendo menos obrigado a isso. Viver menos essa situação de empunhar bandeiras e sair por aí. Quanto menos intensidade tiver a vida artística, a vida musical, menos intensidade terá também todos os outros campos de manifestação. Da minha voz, do meu discurso, da minha fala, da minha inteligência, etc. Ficará tudo mais apaziguado.
Sua obra ficará de forma permanente...
É bem possível. São muitos anos de trabalho, cinquenta e tantos, quase sessenta discos. Setecentas obras musicais. Um acervo enorme de opiniões dadas, de manifestações feitas. Fotos e vídeos. Atividades laterais, dedicadas à política, a isso, àquilo...
O que quero perguntar é o seguinte: há o uso da inteligência artificial na música e as MTGs [antigas montagens usadas no funk que foram representadas agora]...
Que estão trazendo novos problemas. Uma nova problematização do desempenho, sobre como nos colocarmos diante do fazer, do trabalhar, do produzir, do criar, do ter uma obra. Ter a autoralidade. Todas essas questões que envolvem a produção do trabalho artístico. Tudo isso está sendo posto em xeque por todas essas novas possibilidades técnicas. É preciso refletir sobre isso, porque são muitas novas ameaças.
Você pretende proteger sua obra de alguma maneira?
De alguma maneira, claro que sim. Não apenas como autoralidade, mas toda ela no seu significado amplo. Mesmo que essa autorialidade precise ser revista. Mesmo que o sentido de domínio público tenda e seja autorizado a prevalecer. A chamada cultura free, cultura livre, tem que ser ponderada. Tudo isso diante da própria questão maior da autorialidade . Que é uma coisa já consagrada. É um conceito já estabelecido sobre artistas, criadores, produtores de conhecimento, etc. Tudo que afeta esse campo tem que ser levado em conta, em consideração no seu lado benigno e no seu lado maligno. Os dois aspectos que regem esse campo. Então, pensar nessa coisa da inteligência artificial agora é obrigatório. É uma reflexão que toda a sociedade tem que fazer, especialmente os criadores e detentores de autorialidade . Como remunerar o trabalho, de como preservar a dignidade do autor. Naturalmente, as pessoas estão começando a pensar nisso no mundo inteiro. Inclusive os legisladores. A União Europeia deu o pontapé inicial para estabelecer novos parâmetros de regulamentação. São novas discussões. E alguém como eu, por exemplo, não pode se furtar a estar nesse bojo, a dar opinião.
Serviço:
Fábrica Dengo
- Av. Brig. Faria Lima, 196, Pinheiros
- 2ª e 3ª, 8h/20h
- 4ª a sábado, 8h/22h
- Domingo, 8h/19h
Livro Andar com Fé
- Daniel Kondo
- WMF Martins Fontes
- 40 páginas
- R$ 38,30
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