Em 1976, Guilherme Arantes lançou seu primeiro disco - aquele que tem seu nome em rosa na capa -, repleto de baladas doces, com acento pop, gosto de novidade e muitas dúvidas nas letras existenciais feitas por um garoto de 22 anos. Um estouro nas paradas, sobretudo com Meu Mundo e Nada Mais.
Alaíde Costa, consagrada duas décadas antes na bossa nova, abriu seu disco daquele ano, Coração, com Pai Grande, de Milton Nascimento. Nessa e nas demais faixas, ela seguia firme no seu ofício já maturado de gravar grandes canções e extrair nota a nota a tristeza e melancolia delas.
Embora aparentemente estivessem em caminhos opostos em 1976, agora, Guilherme, que tem nos acordes que tira de seu piano sua forma maior de expressão, e Alaíde, esteta da voz, se juntam e se reconhecem íntimos musicalmente no single Meu Mundo e Nada Mais, lançamento do selo Samba Rock Discos que chega às plataformas digitais em 19 de janeiro.
Produzido por Marcus Preto (que trabalhou com Gal Costa, Tom Zé, Erasmo Carlos e outros), o single, gravado em dezembro de 2023, traz só a voz da cantora e o piano do compositor em total integração - esqueça os ‘feats’ mal ajambrados tais como os que despencam diariamente nos serviços de streaming ou povoam festivais Brasil afora.
Ouça trecho da gravação de Alaíde Costa e Guilherme Arantes
Alaíde Costa e Guilherme Arantes cantam 'Meu Mundo e Nada Mais'
Alaíde Costa e Guilherme Arantes cantam 'Meu Mundo e Nada Mais'
“Sempre gostei dessa música, desde que ela foi lançada. Achei que fazer a minha versão daria certo”, diz Alaíde, 88 anos, ao Estadão.
“Não haveria escolha mais fulminante do que Alaíde cantar Meu Mundo e Nada Mais, que abre com a frase ‘quando eu fui ferido, vi tudo mudar’. Ela imprime uma emotividade absurda na música”, devolve Guilherme, 70 anos. Na capa do single, os dois aparecem ilustrados pelo quadrinista Camilo Solano.
Alaíde despontou na carreira nos anos 1950, quando a bossa nova e o canto suave - aquele estilo de Johnny Alf e João Gilberto - trouxeram ares de modernidade à música brasileira. Com a chegada da Jovem Guarda, da Era dos Festivais e do Tropicalismo foi deixada meio de lado pela indústria fonográfica, até ser chamada por Milton Nascimento para gravar no histórico disco Clube da Esquina, em 1972.
Indiferente aos modismos, sempre cantou o que acreditou, o que a fez única. Um repertório baseado essencialmente em compositores como Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Milton, Alf e Sueli Costa. Apesar do reconhecimento no tempo da bossa nova e do Clube, Alaíde diz que vive seu grande momento atualmente. “Sim, (o reconhecimento) é maior do que nos outros tempos”, diz à reportagem.
Guilherme, que já foi gravado por cantoras como Elis Regina, Gal Costa, Maria Bethânia, Fafá de Belém e Leila Pinheiro, afirma que ansiava por este encontro.
Durante muitos anos, acalentei o sonho de me aproximar dessa ala da MPB, sobretudo da Alaíde. Ela é um clássico imperdível com o qual eu sonhei ao longo dos anos”, diz.
Guilherme Arantes
Para Alaíde, Guilherme sempre fez um “pop diferente”. “Embora eu não interpretasse as canções dele, o admirava. Mesmo que o som dele estivesse distante do que eu gravava. Sou fãzona mesmo”, diz.
Em termos musicais, Guilherme tentou traduzir o que ocorreu no estúdio durante a gravação de Meu Mundo e Nada Mais com Alaíde.
“Abri espaço para fazer algo mais ‘bluseiro’, mais Mississípi, gospel. Algo ligado à canção preta do mundo. Foi um acerto muito grande, pois produziu uma sensação em suspense dos acordes e dos versos da música. Isso deu uma carga dramática fantástica para a música”, diz Guilherme.
Guilherme conta que começou a compor Meu Mundo e Nada Mais aos 16 anos, em 1969, quando a juventude hippie tomava conta do Festival de Woodstock nos Estados Unidos em busca de som e liberdade. No Brasil, os jovens aspiravam por tempos menos sombrios. “Essa música é um manifesto de minha revolução pessoal. Em vez de eu estar nos movimentos políticos, eu estava atrás do meu mundo”, diz.
Meu Mundo e Nada Mais não é a primeira canção de Guilherme que Alaíde gravou. Em 2022, ele fez a canção de ninar Berceuse especialmente para ela. A música está no álbum O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim, uma produção de Marcus Preto, Emicida e Pupillo que aproximou Alaíde de uma nova geração de ouvintes.
“Nas duas gravações eu me senti muito à vontade. Pude cantar do meu jeito. Sem nada pop”, diz a cantora, mostrando qual é seu limite.
O produtor Marcus Preto não descarta a possibilidade de o single dar a largada para um álbum no qual vários intérpretes dessem novas versões para as canções de Guilherme, sempre com o compositor ao piano.
Perto dos jovens, distante da “música utilitária”
Guilherme, o cara que a indústria queria como o Elton John brasileiro, sempre trouxe nas frases musicais de seu piano uma genuína influência de Tom Jobim e da bossa nova, assim como a maioria dos músicos de sua geração - Coisas do Brasil, de 1993, é prova inequívoca disso.
“(Tom) Jobim me dizia: ‘vem para nossa turma que você é um de nós’. Foi um acolhimento por parte dele. Eu redescobri tudo isso durante o período da pandemia - que coincidiu com a época em que morei na Espanha. Passei a olhar o Brasil com carinho, a buscar a matriz da música popular brasileira”, diz Guilherme.
O compositor avisa que vem mais por aí: “Isso me empurra para os clássicos e para o caminho das grandes canções. Quero fertilizar isso”. Recentemente, o compositor fez uma música, já gravada, mas ainda inédita, para outro grande nome da bossa nova, a cantora Claudette Soares. Ele também já entregou outra canção para o disco de retorno do grupo Boca Livre.
“O Guilherme é muito acostumado a compor para ele mesmo. Mas está gostando muito dessa fase mais compositor (para outros intérpretes). E sempre fica entre um mix de bossa nova e Clube da Esquina”, diz Marcus Preto.
Assim como Alaíde, que já prepara um novo álbum com músicas inéditas, Guilherme, junto a nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Jorge Ben Jor e outros da chamada MPB, desperta a atenção de um público jovem, atento a trabalhos que eles lançaram, sobretudo entre as décadas de 1960 e 1980.
Para Guilherme, esse é um público que se contrapõe ao que ele chama de “música utilitária” ou “feita para funcionar em ambientes do coletivo”. “São ambientes de shows de balada, um movimento feérico das feiras agropecuárias, do axé, do pagode, do forró e outras tendências”, diz.
Em outubro de 2023, em um texto publicado em seu perfil no Facebook, Guilherme já havia demonstrado incômodo com a massificação cultural, depois de participar do Programa do Faustão, na Band. “Me perguntam por que evito fazer televisão. É que tenho percebido que minha imagem pode trazer danos à audiência da TV, pode trazer danos a mim”, disse na época.
Os jovens no Brasil estão sedentos por resgatar ambientes reflexivos da individuação, do sentimento, do silêncio interior, da revalorização do emocional, de refletir sobre a vida. Essa é uma tradição muito forte na música brasileira, que vem do samba canção, da bossa nova, do tropicalismo, do Clube da Esquina e das bandas dos anos 1980
Guilherme Arantes
Outro apontamento de Guilherme sobre o tema diz respeito à busca pela variedade. “O ambiente da música marqueteira ficou muito monocórdio. O público, então, quer ver de tudo. Há shows lotados de Sá & Guarabyra, Oswaldo Montenegro, Renato Teixeira...É muito favorável o que está ocorrendo. Talvez uma corrida tardia por shows pós-pandemia”.
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