Guilherme Arantes saiu do Brasil em direção à Espanha com um projeto de isolamento e revisão pessoal para durar seis meses. Ele estava deprimido depois de um ano que julgava perdido, se sentindo deslocado, “sem lugar de fala”, como disse em entrevista à série Na Variant no final de 2019. “Não basta mais ser, é preciso significar alguma coisa”, afirmou. “E eu, com esse sobrenome, as pessoas pensam que sou de família nobre.”
Guilherme, de 66 anos, embarcou com a mulher, Marcia, para se juntar aos pouco mais de 58 mil habitantes de Ávila, uma cidade varrida pela peste negra na Idade Média, levando livros, discos e ideias. Chegou no Natal, pegou neve com as mãos, fez passeios, visitou a região da Galícia e conheceu a origem de seus antepassados na cidade de Arantei, província de Pontevedra. Mas a Espanha viu de perto a onda se formar. Depois da China, a Itália começou a registrar as mortes pelo novo coronavírus e a vida começou a mudar. As guardas metropolitana e nacional e as Forças Armadas foram para as ruas, os produtos dos supermercados escassearam e a ordem veio logo: não sair de casa. A Espanha chegou, até a tarde de ontem, a 6.600 novos casos de coronavírus, com 2.696 mortos pela doença. E o mundo mudou.
“A gente acompanhava o que acontecia na Itália com certo distanciamento. Agora, há um mês, veio o pânico. Há três semanas, sumiram o papel higiênico e o álcool em gel das prateleiras, mas passou essa fase e as pessoas deixaram de comprar em quantidades tão egoísticas. O governo agiu com muita seriedade e passou confiança às pessoas.”
Sua vida hoje é em um confinamento diferente daquele que imaginou. “As forças policiais estão nas estradas, não podemos andar de carro nem de trem. Há um mercadinho na frente de casa apenas para pão e alguma emergência.” Ele diz estar triste. Chora ao saber das notícias do Brasil e do “infantilismo” de alguns brasileiros que dizem que o coronavírus se trata de uma invenção ideológica. Ao ver reportagens sobre a situação em favelas do Rio, como a do Complexo do Alemão, sem água, olha o País como uma aberração. “É visto aqui como uma situação de tragédia internacional. Vejo de longe uma terra enlouquecida.”
Guilherme Arantes conta que tem uma rotina caseira. Consegue ler bastante, sobretudo biografias como a do colunista social Zózimo, escrita por Joaquim Ferreira dos Santos, e estudar piano até seis horas por dia, incluindo exercícios de técnica e de conceitos da música barroca. Compor tem sido algo mais complicado. Ele passa por um “bloqueio da alma”. “Não dá para ser criativo”, diz. “É muita tristeza, não dá mais para se inspirar com as belezas do mundo. Estou em um estado de náusea com tantas mortes. Logo devemos passar a Itália em número de mortos. É um processo mórbido. Só consigo mesmo fazer exercícios ao piano.”
Se prefere estar na Espanha neste momento? Guilherme não considera um erro estar em outro país, até porque seus planos eram mesmo o isolamento. “Era isso, ficar aqui por seis meses estudando música barroca, dissecando o barroco no computador, entendendo sua estrutura. Vim com esse objetivo e continuo com ele.” Se haverá o momento em que o ócio depressivo se transformará em criativo? “Ainda não. Vai surgir muita coisa nesse momento, muita música, mas será tudo muito superficial. O isolamento ainda está com esse ‘hype’, todo mundo opinando sobre tudo, mas é o começo. Primeiro será a assimilação do espírito. O saldo final será soturno e, aí sim, haverá inspiração. Mas, por enquanto, tudo o que surgir será muito superficial.”
Outros confinados. O bloqueio do fluxo criativo tem feito muitos artistas da música brasileira em confinamento rever suas obras. Gilberto Gil, por exemplo, fica em casa com a família no Rio. Um post publicado na segunda-feira trouxe um material valioso, em que ele aparece redescobrindo, com a ajuda da filha Nara, a letra de uma canção de 1976 chamada Academia, atual por dizer “academia, a cada epidemia, a cada épica tragicômica mania de abusar o mudo, absurdo e cego querer que o mudo recite poesia.” Gil nunca gravou esta música. Aliás, se esqueceu completamente dela, só tem a letra. Caetano Veloso, segundo a mulher, Paula Lavigne, segue em casa aproveitando o ócio para repassar as novas canções que já tem e criar outras, focando em seu próximo disco. Ele não faz uma obra inédita desde Abraçaço, de 2012.
Outro baiano e tropicalista, Tom Zé, de 83 anos, conta que o diretor de teatro Felipe Hirsch lhe deu trabalho o bastante para não deixar a cabeça ficar vazia nesses dias de confinamento. Felipe quer que Tom componha as músicas de seu próximo espetáculo. “Ele escolheu dez do meu repertório e me deu mais cinco ideias para fazer novas. E eu estou aqui em casa nisso, de manhã, tarde e noite, trabalhando feito uma onça. Às vezes, parece que estou mais lento para conseguir compor, mas o fato é que tenho grande entusiasmo. Minha mulher diz que nunca me viu trabalhar tanto.”
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