Por essas inexplicáveis sintonias, Gabriel Andrade, fundador do festival Coala, e o curador Marcus Preto, chegam ao apartamento onde a reportagem do Estadão entrevistava Guilherme Arantes, na região da avenida Paulista, minutos após o compositor falar sobre os festivais da nova geração e dos grandes shows em arenas, eventos cada vez mais frequentes no cenário musical brasileiro – e para os quais ele jamais havia sido convidado.
O motivo da visita de Andrade e Preto era justamente convidá-lo a participar da décima edição do Coala, que ocorrerá em setembro deste ano em São Paulo. Arantes ficou de pensar. Se aceitar, além de fazer sua estreia, terá a cantora e compositora baiana Xênia França como convidada. Ela já topou.
“Não sei se tenho tutano ou combustível para tudo isso. Não sei como o público se comportará comigo. Talvez esse momento esteja chegando, mas será preciso construí-lo”, disse Arantes, 70 anos, antes do convite. O compositor demonstra certa estranheza com um ambiente multifacetado, sobretudo do Rock in Rio, que citou recentemente em uma apresentação em São Paulo.
A hesitação de Arantes é por conta de seu retorno a Ávila, na Espanha, onde ele mora metade do ano – a outra, passa em Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador. Ele quer tirar um tempo para compor. Persistir em busca de algo que define como “uma nova era de encanto” na música brasileira. Não apenas para ele, afirma, mas também para intérpretes e público, longe do que os algoritmos sugerem nas plataformas e nas redes sociais.
Gravado recentemente por Alaíde Costa, Claudette Soares e Boca Livre, em singles produzidos por Preto – e, em 2016 e 2018, por Gal Costa –, Arantes, ao Estadão, criticou o reggaeton que toca sem parar na Espanha e não propõe, segundo ele, nada de novo. Disse ter sido adjetivado e deslegitimado ao longo da carreira. “Você vai chamar o Stevie Wonder de ‘arquiteto do pop’? Não, né? Isso é uma besteira.”
Para Arantes, que largou a faculdade de arquitetura nos anos 1970 para seguir na música popular – para desgosto de seu pai, o cirurgião Gelson Arantes, que o queria concertista –, não há grandes espaços para a geração atual do pop brasileiro. “A partir dos anos 1990, houve uma ‘curralização’ da cultura pop nos ambientes dos shows. As músicas passaram a ser feitas para funcionar nesse curral”, diz.
Confira a entrevista
Recentemente, em um show em São Paulo, você comentou o fato de nunca ter sido chamado para o Rock in Rio. E o comparou a uma praça de alimentação. O que quis dizer?
É, nesses festivais, você não vai para assistir a um show. Vai para, como eles dizem, “viver uma experiência”. É uma experiência de comportamento, gastronomia, esportes radicais, moda etc. E a música é um acompanhamento. Um catchup que está na praça de alimentação, vamos dizer. Eu os chamo de praça de alimentação porque nela você mistura o cheiro do orégano da pizza com a soja do sushi. De salada com sorvetes. É algo genérico, muito louco. E me parece que esses novos festivais se propõem a essa multiplicidade. Mas temos que respeitar. Se vier o convite, não é algo para se descartar. Posso ser um anfitrião, convidar pessoas de várias gerações e diferentes linhagens. Se eu fizer um show [nesses festivais] eu levo o Belo, Péricles, Xande de Pilares, Nenhum de Nós, Engenheiros do Havaí, Jota Quest, Marina, Vanessa da Mata...Poderia ser o maior line-up que já houve, com pessoas que me gravaram. Acho, porém, que os artistas não ganham muito com essa praça de alimentação. Eu sou a alta cozinha. Eu sou um Érick Jacquin [chef francês, conhecido pelo seu trabalho no Master Chef e por ser donos de restaurantes em São Paulo]. Quero ter o meu bistrô. Prefiro isso a ter uma esfiha de multidões.
Ressente-se de não ser chamado?
Talvez eles tenham receio. Li que, recentemente, o Blur [banda britânica de rock alternativo] não foi bem recebido no Coachella [em abril, na Califórnia]. A plateia estranhou, ninguém cantou nada. É que o Blur também não é nenhuma...Enfim. O Lollapalooza [em março, em São Paulo] não foi tão bom para o Marcelo D2 quanto em outras ocasiões. O Gil [no Lolla] se saiu bem porque ele é o Bob Marley, é o Stevie Wonder. Gil fez um show compacto, bonito e bem tocado. Não sei se tenho tutano ou combustível para tudo isso. Não sei como o público se comportará comigo. Talvez esse momento esteja chegando, mas será preciso construí-lo.
No cenário internacional eu prefiro Cindy Lauper a Madonna. A Cindy é arte pop
Guilherme Arantes
As grandes produtoras estão contratando os medalhões da MPB para fazer o que chamam de ‘show de arena’, em estádios. Como você vê esse movimento de mercado?
A escala mudou. O mercado ficou maior. Operacionalmente, é melhor para viabilizar a questão dos custos. O Guilherme prefere o Au Bon Gourmet [antiga e pequena casa no Rio de Janeiro, na qual Tom Jobim, Vinicius de Moraes e João Gilberto apresentaram Garota de Ipanema pela primeira vez, em 1962]. Estou em busca da coisa micro que gera o macro. Não tenho essas ambições algébricas. No cenário internacional, por exemplo, eu prefiro Cindy Lauper a Madonna. A Cindy é arte pop. A Taylor Swift não consigo identificar muito...Talvez eu esteja em um afastamento geracional. Prefiro a Sia Furler, que é fantástica, Dua Lipa e Björk. Essas pessoas estranhas, eu adoro.
Você tem feito músicas para alguns intérpretes. No passado não tão distante, fez duas para Gal. Fez agora para Claudette Soares, Alaíde Costa e Boca Livre. Entregou uma inédita para a Simone. O que significa esse movimento dentro da sua carreira?
Esse era o meu sonho de criança. Não era o palco. E sim o mundo da música encarnado por Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Baden Powell. Meu sonho de menino era ser o Chico Buarque. Nesse sentido, tenho a influência do meu pai. Ele era um audiófilo, colecionava discos. Assim que fui criado. Ouvindo Dilermando Reis, Garoto e, posteriormente, a bossa nova. Agora, com a idade, vejo que o núcleo da minha vida é compor. Gosto de fazer shows, do contato com o público e canto com alegria. Curti a vaidade dos anos de sucesso. Mas, naquela época, eu não tinha quem aproveitasse as minhas músicas, sempre muito pessoais. A música para Gal, por exemplo, [Puro Sangue, em 2018], eu me esmerei muito para fazer. Queria dar a ela um manifesto de amor em uma época de estranhamentos, das pessoas se metendo na vida dos outros, politizando tudo. A mesma coisa quando fiz música para Maria Bethânia [Brincar de Viver] , Elis Regina [Aprendendo a Jogar] e Roberto Carlos [Toda Vã Filosofia]. Fiz Planeta Água para o Ney Matogrosso. Quando era adolescente, ia à TV Record para ver Roberto Carlos, Chico, Nara Leão, Elis...São todos geniais.
Ney não quis gravar Planeta Água?
Na época veio o festival. O jornalista Okky de Souza me disse: “isso é uma pérola, não a entregue para ninguém”. Fiquei com essa dívida com o Ney. Pretendo pagá-la. Ney e Simone são possibilidades para um futuro próximo. Eu tenho paixão pelos cantores.
Você fala sobre esses nomes da música brasileira com uma distância de fã, de admirador. Não se sente perto dessa turma artisticamente?
Sim, tranquilamente. O que me diferencia muito não é só fazer música, mas fazê-la em uma escola antiga, com introdução. Isso vem de [cantarola a introdução de Chega de Saudade, composta por Tom Jobim]. É uma composição à parte. Percebi que faço isso desde menino. Todas as minhas músicas têm [cantarola as introduções de Cheia de Charme, Um Dia, Um Adeus e Coisas do Brasil].
Meu pai queria que eu fosse concertista, mas eu tinha preguiça de estudar. Eu só queria fazer música, tirar tudo de ouvido. Fui para a música popular, que ele achava algo menor. Em 2000, fiz um sarau na Steinway Hall, em Nova York, com músicos da Juilliard School, e foi uma apresentação maravilhosa. Toquei minhas músicas populares também. Voltei e fui contar para o meu pai: “Pai, eu toquei na sala Steinway, no piano do [Vladimir] Horowitz. Meu pai: “Não, não, não! Você era para tocar Tchaikovsky! Não era para tocar música popular!”. Eu fiquei com tanta raiva do meu pai. Ele já estava mais idoso, mas a teimosia...Eu virei para ele e disse: “Papai, não era eu para tocar Tchaikovsky! Acorda! Eu sou um Tchaikovsky”. Lógico que não me acho, mas, naquele momento, eu tinha que dar essa resposta a ele. Ele tinha que entender que eu sou da mesma falange do Tchaikovsky. Temos o amor por compor músicas!
Você tem a fama do “cara do pop” no Brasil. Isso te aprisionou?
É um carimbo cabível. Eu fui um dos inventores dessa onda no final dos anos 1970. O pop brasileiro nasceu com Perdidos na Selva, que eu fiz com Júlio Barroso. Ela foi dar no pop rock dos anos 1980, na Blitz, no Lulu Santos e outros. Eu vinha perseguindo esse som. Achei definitivamente esse caminho com Deixa Chover [1981], que era uma bossa pop, tema da novela Baila Comigo. Foi no mesmo ano do festival que eu concorri com Planeta Água. Eu era “o cara” naquele momento. A bola da vez, como sempre ocorre no Brasil. O Billy Joel é pop. O Stevie Wonder é muito pop. Mas você vai chamá-lo de “arquiteto do pop”? Não, né? Isso é uma besteira. Nos Estados Unidos a gaveta não é tão imóvel. O Brasil reluta em abandonar a adjetivação. E também é deslegitimador. Eu fui muito deslegitimado no tempo da FAU [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP]. Enquanto meus colegas estavam na Libelu [movimento estudantil contra a ditadura], eu era revelado por uma novela da TV Globo. Algo imperdoável. No dia do congresso da UNE, eu estava gravando o [parada de sucesso] Globo de Ouro com uma música que era uma revolução na minha vida: “eu queria tanto estar no escuro do meu quarto, à meia-noite, à meia luz/ daria tudo por meu mundo e nada mais”. Isso não era sem querer. Era algo da minha individuação, uma revolução pessoal muito mais poderosa do que a dos meus colegas de faculdade.
Fui para os braços do povão, das meninas pobres das favelas. Virei uma paixão das donas de casa. Isso é bonito demais!
Guilherme Arantes
Entenderam como alienação?
Meus colegas me chamavam de “ídalo”. Virei um cantor de [revistas] Sétimo Céu, Contigo, Amiga...Virei cantor de auditório. Tenho uma boa explicação: o Chico, o Gil e o Caetano eram cantores de auditório. Tudo o que vi de mais nobre no Brasil era de auditório. Mas havia uma diferença: eles, pré-1968, tiveram os auditórios formados por universitários. Eu já peguei um período fechado, de censura. O que eu tinha para ir era o Barros de Alencar e o Bolinha, nos quais o Chico jamais iria. Até hoje sou amigo do Raul Gil. Silvio Santos me recebeu com honra. Fui para os braços do povão, das meninas pobres das favelas. Virei uma paixão das donas de casa. Isso é bonito demais! Ainda persigo essa beleza dos tempos dos programas de auditório.
No pop brasileiro atual, o que te chama atenção?
Gosto muito da Anavitória. Gosto do estilo do Vitor Kley e do Tiago Iorc. Gosto do Os Garotin, que são uns meninos que vieram com uma linha potente, algo como Stevie Wonder. Porém, o ambiente atual no Brasil é muito desfavorável para eles. Você tem uma massa humana procurando um hedonismo de festa. A partir dos anos 1990, houve uma ‘curralização’ da cultura pop nos ambientes dos shows. É o pagode, o sertanejo... As músicas passaram a ser feitas para funcionar nesse curral. Não há uma proposta aberta. Assim é no forró, na sofrência, no piseiro, no funk e no trap. Com isso, você perde em reflexão, em angústia, nesses sentimentos mais softs do ser humano. É um movimento mundial.
Esses gêneros que você citou te dão algo musicalmente?
O reggaeton, que toca muito na Espanha – e é um saco –, é uma fórmula rítmica [ele canta o ritmo] que é em cima da cúmbia. O reggaeton é um som eletrônico que tem em países como Paraguai e Colômbia, com uma cadência de dança que é tipicamente árabe. Uma levada que é para o quadril mexer. Tem algo étnico, mas não produz coisas de qualidade e instigantes. Ele fica limitado a um discurso chato de empoderamento, de ostentações e joias, que é fraco. O funk e o trap também vão para a vibração dessa dança. Às vezes, artistas de fora desse cenário, como o Sam Smith, usam essa fórmula rítmica, mas bota algo a mais. Adoro o Sam Smith! Tem uma voz belíssima. Uma figura humana generosa. Uma graça! Ele tem uma proposta artística linda. O ativismo dele é de bom gosto, lindo! Ele é um artista pop com excelência!
Ninguém aguenta mais o minimalismo [na música]. O minimalismo é insuportável!
Guilherme Arantes
Em 2021, em conversa com o Estadão, você falou em “desilusão da alma”, motivada pela questão da indústria da música. Esse sentimento persiste?
O mundo ainda enfrenta um processo de cruzadas de narrativas. E ela vai se espraiando pelo mundo e gera guerras eternas, como Ucrânia e Rússia e Hamas e Israel. Mas, sabe o que eu quero? Plantar flores de magia e de encantamento. Outro dia, assisti ao filme As Coisas da Vida [de 1970, com direção de Claude Sautet] e tem uma trilha de piano...Eu até chorei. É isso que tenho que buscar: a dimensão do sonho, de apaixonamento, que havia no mundo e no Brasil anteriormente.
Tenho pesquisado as raízes da bossa nova. É um período de ouro puro. Muito mais que um ritmo, a bossa nova é um sistema harmônico. A nós [músicos e compositores] cabe gerar uma nova era de encanto, de romance, com música melódica. Ou seja, tudo o que os algoritmos nos negam. Ninguém aguenta mais o minimalismo [na música]. O minimalismo é insuportável! Aquelas músicas do U2 que não saem do Mi Mi Mi/Lá Lá Lá [notas musicais]. Cabe a nós trazer o esplendor das canções, das melodias e das harmonias.
Os movimentos nascem da vontade de fazer algo novo, assim como Tom, Vinicius, Roberto Menescal, Carlos Lyra e Baden fizeram na bossa nova. Não adianta eu ficar reclamando. Não vou mais perder meu tempo em criticar. O sertanejo não vai mudar. É um mercado poderoso. Temos que respeitar. O Brasil é agro também. Está na hora do Brasil sociologicamente pernambucano e paraibano reconhecer que Santa Catarina também é Brasil. Se não resolvermos isso, desanda tudo. É um problema de linguagem e não de ideologia. É ela quem fabrica a ideologia e não o contrário. O fascismo nasce dos signos, da gesticulação [Guilherme faz gesto de arma com as mãos], das frases e do discurso tóxico.
Falamos em Gal, Elis, Bethânia, Claudette, Alaíde...Quem mais poderia interpretar Guilherme Arantes atualmente?
O sonho de todo compositor é Marisa Monte. Vanessa da Mata, Ana Carolina...
Gal era totalmente lasciva no palco. E não há demérito nenhum nisso.
Guilherme Arantes
Mas elas já são de gerações anteriores. Hoje em dia.
A Marina Sena é muito promissora. Eu a encontrei em uma gravação [para o programa Altas Horas] e lhe disse que ela era uma grande cantora. Ela me respondeu: “que bom você falar isso. Muita gente diz que eu canto mal”. As pessoas têm uma reserva porque ela tem um marketing, um comportamento pop que muita gente acha questionável por explorar a sensualidade. A Gal também fez isso no passado. Gal era totalmente lasciva no palco. E não há demérito nenhum nisso. Se tudo correr bem, quero estar no repertório de vários cantores.
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