O rock, o jazz e a música brasileira deixaram marcas profundas em 1971. A música que girava em toca-discos de 33 rotações vivia transformações movidas por uma urgência em criar novas vias. O rock se reerguia de três grandes perdas: Jimi Hendrix havia morrido em setembro; Janis Joplin, um mês depois; e os Beatles já tinham tomado a irrevogável decisão da ruptura quando o álbum Let It Be chegou às lojas. O maior guitarrista, a maior cantora e a maior banda desde o surgimento da palavra rock haviam saído de cena.
Não haveria quem substituísse esses três paradigmas pelos próximos 50 anos – e certamente será escrito o mesmo em 2081 –, mas o universo do rock em 1971 já era grande demais para dar-se por combalido. Na virada da década, ou um pouco antes, os garotos haviam apanhado uma lasca da tíbia de Helter Skelter, lançada pelos Beatles em 1968, no Álbum Branco, para irem mais longe, ao menos, em decibéis. Ao contrário do soft rock de Cat Stevens, que voltava a glorificar os violões no estupendo Teaser and the Firecat, vendendo 3 milhões de cópias só nos Estados Unidos, e de Carole King, que vinha com You’ve Got a Friend, regravada no mesmo ano por James Taylor, grupos passaram a pesar a mão para fazerem o que ficou para a história como, provocando o soft, o hard rock.
O Black Sabbath de Ozzy Osbourne já havia levado sacerdotes a sugerir exorcismos de jovens um ano antes quando saíram dois álbuns sendo, um deles, Paranoid. Agora, Master of Reality era ainda mais sombrio. “Eles baixaram os tons para soar mais soturno”, lembra Bento Araújo, jornalista, pesquisador e autor da coleção de livros Lindo Sonho Delirante, com a história do psicodelismo brasileiro, prestes a ter seu terceiro volume lançado.
O rock de 71 viu ainda o Who lançar o aclamado Who’s Next; um álbum póstumo, Pearl, de Janis Joplin, sair com Me And Bobby McGee e Mercedes Benz; e o Led Zeppelin chegar com Led Zeppelin IV, que tinha Black Dog, Rock And Roll e a então imaculada Stairway To Heaven, acusada anos depois de se tratar de um plágio da composição Taurus, que a banda Spirit havia feito em 1967. Um julgamento em 2016 absolveria o Led da acusação por uma questão técnica (mas que era plágio, era).
Sem a presença física dos Beatles, os Rolling Stones, sua antítese, chegava com Sticky Fingers, de Dead Flowers, Brown Sugar e Wild Horses. “Eu brinco dizendo que eles esperaram os Beatles saírem de cena para fazerem seus melhores discos: Sticky Fingers de 71 e Exile on Main Street, no ano seguinte”, diz Bento. Mas 1971 foi um rio tomado por muitas correntezas e, em uma delas, vinha o rock progressivo, ou apenas prog. Genesis (Nursery Crime), Jethro Tull (Aqualung), Yes (Fragile) e Emerson Lake and Palmer (Tarkus) faziam essas entregas históricas.
O jazz entrava em uma nova reinvenção naquele 1971 com a mutação de uma linhagem, pela primeira vez, originária do rock. Cansadas de se opor à força da indústria do disco, cabeças vanguardistas demais para seguirem insistindo no hard bop mas nem tão malucas para darem sobrevida às flutuações do free jazz, novos nomes chegaram para fundar o jazz rock. Há 50 anos, dois depois de Miles Davis lançar as bases do fusion com o álbum Bitches Brew, dois grandes grupos surgiram para firmar a onda dos solos longos e vigorosos, muitas convenções no meio dos temas e formações cheias de teclados que lembravam o próprio rock progressivo: o Mahavishnu Orchestra, do guitarrista John McLaughlin e do baterista Billy Cobham; e o Weather Report, do tecladista Joe Zawinul, do baixista Jaco Pastorius e do saxofonista Wayne Shorter. A tríade seria fechada com o projeto do pianista Chick Corea, o Return to Forever, que lançaria seu primeiro álbum no ano seguinte.
O jazz rock seria a porta de entrada para um público jovem chegar ao jazz, um gênero dando sinais de esgotamento depois de uma década de free deixar mesmo seus praticantes exauridos. Um primo mais articulado do que o rock e menos erudito do que o jazz, ficaria como um bem resolvido idioma de fronteira entre esses dois universos. “É um refinamento de elementos típicos do rock que não tinham mais como ser desenvolvidos pelos músicos de jazz”, escreveram os estudiosos Joachin-Ernest Berendict e Günter Huesman em O Livro do Jazz.
Ao mesmo tempo em que revigorava a produção e as audiências, o jazz rock seria o campo de cultivo para o surgimento de nomes como Chick Corea, John Scofield, Al Di Meola e, talvez o maior de todos de sua geração, o baixista Jaco Pastorius. “O jazz se rendeu ao rock ou o rock ao jazz? Fica essa pergunta”, reflete o produtor de festivais de jazz e pesquisador Toy Lima. E o Brasil? Teria recebido essa influência de alguma forma. “Não em 71, mas na década seguinte muitos nomes do jazz brasileiro iriam gravar influenciados pelo fusion, sobretudo no selo Som da Gente”, diz Toy.
O Brasil ouvira o jazz rock de longe chamando-o mais por seu outro nome, fusion. O país vivia questões sociais mais complicadas do que estéticas e, antes de tocar, era preciso respirar. Exilados para não serem presos pela segunda vez, Caetano Veloso e Gilberto Gil mandavam notícias direto de Londres, de onde só voltariam em 1972. Caetano, triste, querendo retornar ao Brasil, cantava London London e Asa Branca, e Gil, fascinado pela atmosfera das ruas Kings Road e a Carnaby Street, inseria Can't Find My Way Home, do tecladista Steve Winwood, em seu repertório. Dois álbuns cinzas feitos nas sombras de um período devastador e incerto.
Chico Buarque, retornado de seus 14 meses de exílio na Itália, fazia um dos maiores lançamentos do ano, o álbum Construção, com Deus lhe Pague, Valsinha, Cotidiano e ela, a própria Construção. Os Mutantes mostravam o disco Jardim Elétrico; Elis Regina lançava o álbum Ela com Black is Beautiful, que o regime militar consideraria prova de sua ligação com o grupo militante racial Panteras Negras, dos EUA, e Roberto Carlos deixaria sua grande obra. É do disco de 1971 sua conversão definitiva ao romantismo com Detalhes, Como Dois e Dois, De Tanto Amor, Todos Estão Surdos, Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos e Amada Amante. Cada uma delas pronta para durar a eternidade.
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