'Homem com H' celebra a liberdade artística de Ney Matogrosso

Musical mostra como cantor usou ambiguidade e originalidade para combater ditadura e o conservadorismo

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Foto do author Ubiratan Brasil

Quando participou de uma conversa para dar dicas ao ator Renan Mattos, protagonista do musical Ney Matogrosso – Homem com H, o próprio cantor fez observações positivas, mas, ao olhar uma imagem de Mattos caracterizado, ele fez um reparo: “Eu não usava cueca ou sunga quando cantava – era tapa-sexo mesmo”. Assim, quando o espetáculo estrear na sexta-feira, 9, no 033 Rooftop, que fica no topo do Teatro Santander, o público vai conferir Mattos exibindo a real sensualidade de um dos maiores artistas brasileiros.

Ensaio geral do musical 'Ney Matogrosso - Homem com H' Foto: Taba Benedicto/Estadão

É, portanto, com uma profusão de pequenos detalhes que se construiu o espetáculo que, sem seguir uma ordem cronológica, explora momentos e canções marcantes da trajetória do cantor que se parece com um paradoxo: ao mesmo tempo em que, na sua incansável busca pela liberdade, sempre se exibiu demais em sua carreira artística, Ney também soube preservar, ao longo de quase 50 anos de trajetória, aspectos íntimos que também nortearam seu trabalho.  “Ney é um artista impressionante não apenas pela carreira que constrói, mas também pela ampla visão cênica que tem do conjunto”, observa Marília Toledo, que divide a direção do espetáculo com Fernanda Chamma e o roteiro com Emilio Boechat. “Ele cuida de todas as etapas de sua performance, como a escolha do repertório e banda, a definição do figurino, da iluminação, de quem vai assinar a direção geral.  E, quando está em cena, ele se metamorfoseia em diferentes personagens. Parece incrível, mas Ney nunca estudou dança e, quando o vemos em cena, parece que nasceu sabendo dançar. Mas ele jamais se coreografa. É sempre um movimento livre.”

Ensaio geral do musical 'Ney Matogrosso - Homem com H' Foto: Taba Benedicto/Estadão

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Seleção

É justamente essa liberdade em cena que confere um toque especial na bela atuação de Renan Mattos. “Busco mostrar a verdade transgressora que marca o caminho do Ney, pretendo estabelecer uma relação espiritual com ele”, diz o ator, que não vai imitá-lo, especialmente na voz. “Busco uma ressonância.”  A trama começa com um show do Secos & Molhados, em plena ditadura militar, quando uma pessoa da plateia xinga Ney de v.... Naquele instante, a narrativa dá um salto no passado, até chegar no momento em que o Ney criança ouve o mesmo desaforo de seu pai. Começa, então, uma fusão de cenas que retratam a infância e adolescência do artista. “São como flashes que, costurados, permitem o público conhecer fatos decisivos da história do Ney”, comenta Fernanda Chamma, também autora da coreografia. “A liberdade inspira os movimentos, que precisam parecer espontâneos, como são os do Ney em cena, que jamais repete uma atuação: ele sempre oferece algo novo a cada show.”

Trajetória

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 As pinceladas são necessárias pois, aos 81 anos, Ney Matogrosso uma impressionante trajetória pessoal e artística, desde a juventude marcada pelo confronto com o pai militar, a descoberta da sexualidade na Aeronáutica, até a explosão do talento com os Secos & Molhados (1973-74) e a seguinte carreira solo, sem esquecer suas passagens pelo teatro e cinema. “Ney nunca foi alternativo: ele construiu um movimento paralelo na música brasileira porque sua obra é única”, atesta o diretor musical Daniel Rocha, que estudou profundamente as canções, escolhendo 44 temas (com 53 inserções) que inspiraram os arranjos certos para contar as histórias do cantor.

Ensaio geral do musical 'Ney Matogrosso - Homem com H' Foto: Taba Benedicto/Estadão

Durante todo o processo criativo, aliás, Ney Matogrosso manteve-se distante, ainda que tenha se encontrado com Marília, Daniel e o intérprete de seu personagem, Renan. “Só li quatro versões do roteiro para consertar possíveis erros da história”, conta Ney ao Estadão. “Ele tem uma memória incrível, ajudou no ajuste de muitos detalhes. Ney nos deu liberdade criativa para quase tudo, menos para aspectos de sua infância e do período com o Secos: ali, ele quis precisão.” Baseando-se principalmente em Ney Matogrosso: A Biografia, escrita por Julio Maria, repórter do Estadão, Marília e Boechat privilegiaram o artista que “combateu a ditadura não com palavras, mas com sua atitude cênica, entrando maquiado e praticamente nu no palco e na televisão, na época de maior censura que o país já viveu”, diz ela. “As ambiguidades que ele sempre trouxe para o público foram pauta na década de 70 e permanecem em pauta até os dias de hoje.” l

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