‘In Utero’, do Nirvana, completa 30 anos; ouça raridades para entender o último disco de Kurt Cobain

Comunidade de colecionadores da banda permite entender os mínimos detalhes de como o clássico foi construído para ser uma resposta barulhenta e anticomercial ao antecessor ‘Nevermind’

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Foto do author Bruno Romani

Nesta quinta, 21, In Utero, terceiro e último disco de estúdio do Nirvana, completa 30 anos de lançamento. Concebido para ser uma resposta barulhenta e anticomercial ao antecessor Nevermind, o trabalho também teve recepção imediata positiva de crítica e público, o que acabou conferindo ao trabalho a aura de “clássico” três décadas depois.

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Para comemorar, a Universal Music anunciou o lançamento de edições comemorativas que fariam Kurt Cobain se contorcer de raiva: não se aprofunda no disco e tem jeito de produto altamente comercial. Felizmente, a comunidade de colecionadores do Nirvana ainda é bastante ativa e os seus achados conseguem jogar luz nos mínimos detalhes do álbum que encerrou a breve e bombástica carreira do grupo de Seattle.

Veja abaixo como entender a construção de In Utero a partir de raridades disponíveis em áudio na internet.

O começo

Antes mesmo que alguns dos principais sucessos de Nevermind, como Smells Like Teen Spirit e Come As You Are se tornassem realidade, Cobain já tinha na manga a primeira música do In Utero. Dumb foi composta em 1990, após a turnê do disco Bleach, e surgiu num pacote de canções candidatas a um possível segundo álbum da banda, como Lithium. Não é possível saber porque Dumb não avançou naquele momento, mas Cobain não parecia satisfeito com a letra - em seus diários, há algumas versões diferentes dos versos. Em 25 de setembro de 1990, o vocalista mostrou publicamente Dumb pela primeira vez em uma sessão ao vivo na rádio KAOS-FM, de Seattle.

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Hit ‘esquecido’

Poucos tempo após Dave Grohl entrar para o Nirvana - e meses antes que a produção de Nevermind tivesse início -, surgiram duas pedras fundamentais do In Utero: Pennyroyal Tea e All Apologies - as duas foram compostas no fim de 1990. Na época, All Apologies se chamava “La La La: Alternateen Anthem” e chegou a ganhar uma demo gravada em 1 de janeiro de 1991 junto com outras candidatas ao segundo disco da banda.

O som, porém, não avançou e entrou na geladeira conforme a produção, a gravação, o estouro e a turnê de Nevermind avançaram. All Apologies só foi aparecer no universo da banda em 2 de dezembro de 1991, no show da banda em Newcastle (Inglaterra). Ela foi tocada ao vivo pela primeira vez durante o bis e levava uma letra totalmente diferente da que foi registrada no In Utero.

O single que não existiu

Embora estivesse no primeiro pacote de composições do que se tornaria o In Utero, Pennyroyal Tea foi escolhida para ser o último single a promover o disco - entre o período que foi composta, no fim de 1990, e a data planejada de promoção, em abril de 1994, foram cerca de 3 anos e meio de espera.

O single teria uma versão mixada por Scott Litt, produtor que fez fama ao trabalhar os discos do R.E.M. nos anos 1990, o que dava indícios de que nem toda brutalidade da sonoridade de In Utero agradava Cobain. A nova versão de Pennyroyal Tea ressaltava os backing vocals e era mais limpa. Em outubro de 1993, o vocalista disse em entrevista: “Acho que tem algumas músicas no In Utero que poderiam estar um pouco mais limpas. Definitivamente, Pennyroyal Tea é uma delas. Ela não foi gravada direito. Tem algo de errado. Deveria ter sido gravada como o Nevermind porque eu sei que é uma música forte, um hit. Estamos pensando em regravá-la ou remixá-la”.

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Com a morte do artista no mesmo mês em que o novo single chegaria ao mercado, a campanha de divulgação foi cancelada às pressas e os discos que já estavam impressos se tornaram items de colecionador ao longo dos anos. E a versão mais famosa da canção acabou ficando para o Unplugged, lançado no fim de 1994.

Pacote fechado

Durante a mixagem de Nevermind, o Nirvana fechou o pacote de músicas “lentas” do que seria o In Utero. Segundo o livro Come As You Are: The Story of Nirvana, Cobain compôs Rape Me em maio de 1991 no seu apartamento em Los Angeles. Tanto a letra quanto o arranjo parecem refletir a conexão com o disco que estourou a banda naquele ano. Os versos são uma resposta da vítima ao maníaco apresentado em Polly, enquanto a parte instrumental parece altamente inspirada em Smells Like Teen Spirit - a primeira vez que Rape Me foi tocada, em junho de 1991 em Santa Cruz (Califórnia), deixa clara a semelhança entre as duas canções. Enquanto tentavam se acostumar com o novo som, os músicos deixaram ele com a cara do seu maior hit. Ao longo da turnê do Nevermind, ela foi ganhando sua forma final conforme ia aparecendo nos shows.

Guitarrista relâmpago

Já durante a turnê de Nevermind, surgiu a primeira “barulheira” do In Utero. Na apresentação da banda no Reading Festival, em 30 de agosto de 1992, o Nirvana apresentou pela primeira vez tourette’s. Com letra ainda hoje indecifrada, o som parece não ter caído muito no gosto da banda, que o abandonou dos shows antes mesmo da turnê do In Utero começar, em setembro de 1993. A última apresentação de tourette’s aconteceu em condições especiais - foi no show de Nova York de 23 de julho de 1993. Esse foi o momento em que o Nirvana testou ter novamente um segundo guitarrista, papel que coube ao técnico de guitarra Big John Duncan. Ele tocou só quatro sons, incluindo tourette’s, e nunca mais subiu ao palco com Kurt e companhia.

Semente do Foo Fighters

Marigold é o lado B mais famoso de In Utero e aparece no single de Heart-Shaped Box. A fama da canção não ocorre apenas por apresentar um lado bem doce do Nirvana. É também o único som da banda que não tem Cobain como vocalista, que cede a posição a Grohl. No entanto, o baterista compôs e gravou o som em 1990, antes de entrar no Nirvana, e chegou a lançá-lo sob o nome de Late!, uma tentativa de carreira solo que soltou em 1992 a fita demo “pocketwatch”. O lançamento quase clandestino não dava pistas, mas, para muitos fãs, Marigold é a gênese dos Foo Fighters, que só lançou o primeiro disco em 1995, após a morte do líder do Nirvana.

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Nova raridade

Baseada no livro Perfume, do escritor alemão Patrick Süskind, Scentless Apprentice teve escalada rápida no repertório do Nirvana. Surgiu no fim de 1992, já com a turnê do Nevermind encerrada, e fez sua estreia ao vivo na passagem da banda pelo Brasil em janeiro de 1993. Foi tocada em São Paulo, no dia 16, e no Rio de Janeiro, uma semana depois. Também ganhou uma gravação demo no Rio de Janeiro entre 19 e 21 de janeiro. Assim, se tornou umas das 3 músicas do In Utero na última apresentação da banda como um trio, que ocorreu em 6 de agosto de 1993 - no show seguinte, Pat Smear foi incorporado como guitarrista. Na data, a banda, que se preparava para o lançamento do novo disco, fez uma aparição surpresa no show que visava levantar fundos para a investigação da morte de Mia Zapata, vocalista da banda The Gits, de Seattle. O Nirvana se apresentou com parte dos equipamentos emprestados pela banda Tad e anunciou logo no início que ia tocar sons novos - a abertura foi com Scentless Apprentice. As imagens do show raro surgiram no mês passado no YouTube.

Coração do disco

Embora muitas músicas já estivessem no horizonte do In Utero anos antes de sua gravação, a sua pedra fundamental surgiu já na reta final do período de composição. Heart-Shaped Box, uma declaração de amor de Cobain para Courtney Love, foi feita no fim de 1992. Grohl já afirmou em entrevista que a banda rabiscou algumas ideias para o hit em 21 de dezembro daquele ano - a sessão de demos de outubro de 1992, por exemplo, não inclui a música. A partir disso, o som foi lapidado, principalmente a letra, durante a passagem da banda pelo Brasil em janeiro de 1993 (foi tocada nos dois shows e foi a única música registrada com voz nas gravações de pré-produção feitas no Rio de Janeiro) e logo se fixou no setlist.

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Candidata eterna

Sappy foi a candidata a hit do Nirvana que nunca virou realidade. O som foi composto entre 87 e 88, antes do Bleach, mas não foi incluso no disco de estreia da banda. Na sequência, foi tocado durante toda a turnê de divulgação até o fim de 1990 e parecia um sólido candidato ao Nevermind. Com uma pegada pop, apareceu em todas as gravações de pré-produção e produção do segundo disco da banda, mas novamente foi abandonado - o trauma parece ter sido grande, e a canção não foi tocada na turnê do Nevermind. Cobain, porém, parecia determinado a fazer Sappy acontecer - em seus diários, ele incluiu a música no setlist de In Utero. A banda chegou a grava-la nas sessões oficiais do disco, mas novamente ela ficou de fora da versão final. Talvez decepcionada, a banda lançou Sappy quase clandestinamente, na coletânea No Alternative - a canção saiu sem créditos no disco. Ainda assim, Sappy apareceu em três shows da turnê do In Utero, a última delas em Milão (Itália) em 25 de fevereiro de 1994.

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Pacotão

Um dos poucos shows que o Nirvana fez no primeiro semestre de 1993 é considerado a estreia informal do In Utero. No dia 9 de abril de 1993, a banda se apresentou em São Francisco (EUA) e tocou 8 das 12 músicas que estariam no disco - a gravação havia sido concluída em fevereiro. Três delas foram tocadas pela primeira vez: Serve the Servants, Frances Farmer Will Have Her Revenge on Seattle e Milk it. Possivelmente, esta última foi a última música feita para o disco. Detalhe: ela foi composta no Brasil, pois não há registros e informações sobre a canção antes das sessões de pré-produção realizadas no Rio de Janeiro.

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Saideira

Em toda a história do Nirvana, as músicas não respeitavam fronteiras temporais - composições de períodos diferentes se misturaram ao longo do tempo, algo pouco usual nos dias atuais da indústria, nos quais artistas costumam mostrar novas músicas apenas depois do lançamento oficial do trabalho. No caso do Nirvana, era comum que novas canções começassem a aparecer em meio a divulgação de discos, numa espécie de antecipação de eras. A turnê do In Utero repetiu o padrão e deu uma amostra do que poderia ter sido o futuro da banda. Em 23 de outubro de 1993, em Chicago, a banda tocou pela primeira vez You Know You’re Right. Foi também a última. Na sequência, a música sumiu do setlist e foi gravada oficialmente em janeiro de 1994 - e o lançamento aconteceu apenas em 2002, oito anos após a morte de Cobain.

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