João Gilberto tem primeiro relançamento em vinil com 'Amoroso'

Álbum emblemático de 1977 foi uma suave revolução no panorama então esgotado da MPB politizada

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Atualização:

Em 1977, quando o Brasil ensaiava a distensão da ditadura militar e o predomínio das canções de protesto e de contracultura começava a dar sinais de esgotamento no panorama da MPB, João Gilberto decidiu promover mais uma suave e harmoniosa revolução. Nos Estados Unidos, onde vivia, o pai da bossa nova entrou em estúdio para gravar Amoroso, álbum emblemático de sua discografia que volta ao mercado brasileiro no mês que vem, no primeiro relançamento de um LP de João pela prestigiada série Clássicos em Vinil, da Polysom.

Um dos últimos shows de João Gilberto em São Paulo, em 2008 Foto: Eduardo Nicolau

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Amoroso é um marco na trajetória gilbertiana e, desde já, também no catálogo da gravadora (sempre foi peça essencial em qualquer coleção de MPB que se preze). Não fosse pela qualidade excepcional do álbum, ele também seria muito importante na história de João por ter criado as condições ideais para que ele voltasse definitivamente a viver no Brasil, após um longo período morando nos EUA. A boa repercussão do trabalho por aqui culminou na inclusão de Wave na trilha da novela Água Viva, da TV Globo. Leia a análise faixa a faixa de Amoroso.

O álbum tem João em interpretações primorosas de Wave (Tom Jobim), Caminhos Cruzados (Tom Jobim-Newton Mendonça), Zíngaro/Retrato em Branco e Preto (Tom Jobim-Chico Buarque), ‘S Wonderful (George and Ira Gershwin) e as antológicas versões de Estate (Bruno Martino) e Besame Mucho (Consuelo Velásquez). Os luxuosos arranjos são do maestro alemão Claus Ogerman.

“As oito faixas de Amoroso foram gravadas em seis dias. Pouco mais de uma por dia. A média nos estúdios americanos era, na época, de pelo menos três canções por dia. Mas, sendo João Gilberto quem é, a Warner pode ter preferido não discutir...”, diz o jornalista e escritor Ruy Castro, autor de Chega de Saudade (Cia. das Letras). 

Relançamento em tempos difíceis

A reedição de Amoroso foi remasterizada a partir da fita master da gravação de 1977, do jeitinho que João queria. O álbum será relançado em discos de 180 gramas, com as mesmas capa e contracapa de suas primeiras edições. No entanto, para manter o padrão da coleção Clássicos em Vinil, a gravadora preparou uma capa interna com as letras das canções, algo que não consta nos bolachões “originais” – que podem ser encontrados nos melhores sebos do Brasil com preços variando entre R$ 100 e R$ 300.

O músico João Gilberto em show de 1980 no Teatro Castro Alves, em Salvador Foto: Agliberto Lima/Estadão

A previsão é de que o disco esteja disponível para compra na segunda quinzena de outubro. Amoroso está há décadas fora do catálogo da gravadora Warner (antiga WEA), que o lançou em vinil nos anos 1970 e em CD posteriormente. Com o retorno do álbum em seu formato original ao mercado, a Polysom começa a preencher uma lacuna nas estantes das coleções. Os três primeiros discos do cantor e instrumentista – Chega de Saudade (1959), O Amor, o Sorriso e a Flor (1960) e João Gilberto (1961), todos pelo selo Odeon – continuam impedidos de ser reeditados em qualquer formato por causa da disputa judicial com a EMI. 

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Essa pendenga com a multinacional adicionou mais peso ao relançamento de Amoroso, que ocorre num momento crítico da vida de João, interditado judicialmente pela família e com graves problemas financeiros. 

O jornalista e musicólogo Zuza Homem de Mello conviveu intensamente com João durante a finalização do álbum em Nova York e no retorno do cantor e instrumentista ao Brasil. “Eu sou muito ligado a esse maravilhoso disco”, disse ao Estado. Novos ventos começavam a soprar no Brasil na virada dos anos 70 para os 80 com a iminente redemocratização do País. Em março de 1978, João fez show no Theatro Municipal de São Paulo, com apresentação de Zuza. “Ele estava dócil, amoroso. O título do disco é perfeito para definir João Gilberto”, disse Zuza.

Naquele momento, João foi um dos principais intérpretes da onda que começava a se erguer no mar. Com Amoroso, recolocou a MPB para navegar nas águas da sofisticação.

Ápice de um gênio

Amoroso está para a obra de João Gilberto como Kind of Blue para a de Miles Davis: o ápice da sofisticação musical de dois gênios que revolucionaram a música mundial. Se para chegar até sua joia do jazz modal o trompetista americano teve antes de passar pelo bebop e pelo cool, João precisou condensar o samba e inventar a bossa nova (junto com Tom Jobim) até atingir a quintessência de sua alquimia com o LP de 1977, que será relançado no mês que vem pela Polysom.

O trompetista de jazz Miles Davis durante a gravação de 'Kind of Blue' Foto: Don Hustein/Sony Music

Nada sobra e nada falta no disco. É o mais eclético e universal dele, tem a bossa nova como linha mestra, mas se expande para outras vertentes sonoras e outras línguas, numa mistura que o gênero humano, na ausência de um termo mais preciso, se acostumou a chamar de jazz. Na primeira faixa, um dos pilares da canção americana: ‘S Wonderful, dos irmãos George e Ira Gershwin, para estabelecer de cara as conexões entre as duas melhores escolas de música popular do século 20.

Além do inglês, João também se exercita em italiano e espanhol e promove, à sua maneira, dois achados. As versões dele para o piano-bar Estate, de Bruno Martino, e o bolero Besame Mucho, de Consuelo Velásques. Com harmonizações refinadas e arranjos surpreendentes, elas se transformaram em standards de jazz, replicados posteriormente no repertório de várias estrelas mundiais. “Besame Mucho foi uma surpresa entre os que achavam até então que João só cantava coisas recherchées – e não podia haver nada menos recherchée do que Besame Mucho, todo mundo conhecia”, afirma o jornalista e escritor Ruy Castro.

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A mais recente estrela a homenagear João foi a pianista canadense Diana Krall, que gravou Besame Mucho em 2001 na interpretação gilbertiana. No mesmo álbum, ela também reverenciou o brasileiro reproduzindo a versão dele para ‘S Wonderful

“João deixou os americanos fascinados com sua gravação da canção dos irmãos Gershwin. Ele revolucionou todas as demais interpretações. A batida é tão forte, tão marcante, que, mesmo João cantando em inglês um clássico americano do final dos anos 20, aquilo soa como Brasil”, afirma o musicólogo e jornalista Zuza Homem de Mello, amigo do cantor.

“Gravar ‘S Wonderful em inglês com sotaque baiano pode parecer uma decisão corajosa, mas apenas refletia um velho hábito de João Gilberto na intimidade, de cantar canções americanas – outra que ele adorava era Day In, Day Out. Numa enquete promovida pelo José Domingos Rafaelli em 1952, ele citou seus dois cantores americanos favoritos: Sinatra e Doris Day. Seguindo, aliás, o que, na época, era uma tendência geral no Brasil”, lembra Castro.

Zuza destaca também a intervenção conceitual e a habilidade musical de João em Estate. “É a busca de um acorde que possa caber nessa ideia que ele queria do minimalismo.” Transcorridos 41 anos do lançamento do disco, Zuza diz que ainda o escuta quase diariamente. “Sou muito ligado ao Amoroso, entre outras coisas, por ter convivido com o João em Nova York à época do lançamento, em 1977.”

Amoroso é João Gilberto em toda a sua glória de inventor e de mestre de um estilo inovador de cantar e de tocar violão”, diz o compositor, jornalista e crítico musical Nelson Motta. 

Muitas piadas foram feitas ao longo do tempo sobre a pronúncia de João nos outros idiomas, especialmente em inglês e espanhol. Uma delas diz que ele canta “muintcho” em vez de “mucho” e que seu “inglês era arretado” (João é natural de Juazeiro). Motta e Zuza afirmam que tudo foi intencional, para que as palavras soassem em harmonia com o ritmo. 

Zuza, no entanto, lembra que João Gilberto tinha mesmo dificuldade de se comunicar nos EUA. “Quando estive com ele em Nova York, no primeiro encontro, ele me disse aliviado: ‘Faz um favor, pede uma pizza’.”

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Amoroso foi gravado em Nova York, teve o compositor alemão Claus Ogerman (1930-2016) na regência e nos arranjos e contou com um time de músicos americanos: Grady Tate e Joe Correro na bateria, Jim Hughart no baixo e Ralph Grierson nos teclados. A produção ficou a cargo de Tommy LiPuma (o mesmo que mais de duas décadas depois produziria o disco de Diana Krall).

Ogerman já havia trabalhado com Tom Jobim e se notabilizara nos EUA por dar uma roupagem sofisticada à bossa nova, com o uso de cordas e arranjos delicados. 

Apesar da excelência das três faixas que não são cantadas em português, Zuza diz que sua preferida no disco é Caminhos Cruzados, de Tom Jobim e Newton Mendonça. “É uma obra-prima”, diz ele. De Jobim também estão no disco Retrato em Branco e Preto, Triste e Wave, esta última foi o passaporte para que João voltasse a fazer sucesso no Brasil. Completa o álbum Tintin por Tintin, de Haroldo Barbosa. “Não sei se é o melhor disco dele, mas, com certeza, é o mais bonito”, afirma Zuza.

Leia a análise faixa a faixa de Amoroso por Ruy Castro

Ouça o álbum Amoroso na íntegra.

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