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Joni Mitchell, 79, retorna aos palcos após 20 anos, mais valorizada e influente do que nunca

Desde que se recuperou de um aneurisma, o mundo parece estar correndo atrás do tempo perdido, reconhecendo tardiamente sua extraordinária influência musical

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Por Brian Seibert

NYT - “Vocês são ouro e poeira estelar”, disse uma radiante Joni Mitchell a uma multidão de mais de 20 mil pessoas no apoteótico Gorge Amphitheatre, em Washington, durante sua primeira apresentação ao vivo em mais de vinte anos.

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Mitchell, 79 anos, estava fazendo referência a ‘Woodstock’, canção que ela compôs em 1969, nos dias inebriantes que se seguiram àquele festival transformador, mas agora ela estava descrevendo um fenômeno mais moderno: um mar de luzes de celulares erguidos no escuro.

Muitos artistas provavelmente já se cansaram dessa visão, mas fazia muito tempo que Mitchell não se apresentava de verdade: para ela, a imagem de celulares iluminando a arena era desconhecida e inspiradora. “Vocês parecem uma constelação cadente”, ela disse à multidão, improvisando uma poesia. Este foi apenas um dos milagres de uma noite repleta deles.

Joni Mitchell canta Gorge Amphitheater, em Washington, nos EUA Foto: Justin J Wee / NYT

Em julho do ano passado, Mitchell surpreendeu o mundo da música ao fazer uma aparição surpresa no Newport Folk Festival, sua primeira apresentação pública desde um aneurisma cerebral quase fatal em 2015. Aquelas treze músicas em Newport foram chamadas de “Jam da Joni”, organizada pela cantora e compositora Brandi Carlile para reeditar as sessões descontraídas e regadas a vinho em que Mitchell recebia outros músicos em sua sala de estar na Califórnia.

Newport foi uma demonstração de resiliência – estava ali, cantando, uma mulher que tivera de reaprender a falar – mas também de apoio intergeracional. “Ela está fazendo uma coisa muito, muito corajosa por vocês”, disse Carlile ao público do festival. “É uma prova de entrega e confiança”.

Mas a apresentação do dia 10 de junho no Gorge – encerrando o segundo dia do festival Echoes Through the Canyon – foi algo bem diferente. Foi, por um lado, uma maratona digna de jam band: quase três horas, 24 músicas, incluindo um bis durante o qual Mitchell tocou guitarra elétrica. (Carlile, 42 anos, que vem promovendo o retorno de sua heroína, brincou com Mitchell: “Você é sempre a última ainda de pé”).

Acima de tudo, porém, o show foi uma ressurreição. Depois das primeiras canções – com interpretações empolgantes de ‘Big Yellow Taxi’ e ‘Raised on Robbery’ – um sentimento pareceu se espalhar pela plateia: a voz de Mitchell ficara ainda mais forte, mais rica e mais ágil no ano que se passou desde que aqueles vídeos de Newport viralizaram.

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Na apresentação anterior, Carlile muitas vezes guiava Mitchell ou assumia ela mesma as funções de voz principal. Mas, no Gorge, Mitchell estava mais uma vez no controle. Havia uma tranquilidade renovada em seu passeio pelas melodias e uma pureza perolada no seu timbre. Foi de tirar o fôlego. Ouvir Mitchell atingir certas notas mais uma vez naquela voz inimitável foi como vislumbrar, na selva, um pássaro magnífico que há muito se temia estar extinto.

As pessoas presentes no show tinham vindo de todas as partes – Mitchell foi chamando lugares como Japão, São Francisco e até mesmo sua cidade natal, Saskatoon, Saskatchewan – pela rara oportunidade de ver a cantora e compositora ao vivo. Algumas pessoas usavam camisas ou jaquetas temáticas feitas em casa. Boinas vermelhas bordadas com o nome de Mitchell estavam entre as mercadorias à venda.

Mitchell esbanjou estilo em tranças, óculos escuros e uma camisa de seda floral que ondulava com os ventos. À medida que o sol se punha, o próprio céu parecia uma de suas pinturas prismáticas. O palco do Gorge foi decorado para replicar o clima casual de uma festa na casa de Mitchell: sofás, luminárias e a anfitriã sentada numa poltrona aveludada, com discípulos dos dois lados.

O barato de qualquer Jam da Joni não é só cantar com Mitchell, Carlile disse à multidão, mas cantar para ela. Muitos dos talentosos músicos no palco estavam, felizmente, à altura da tarefa. Sarah McLachlan, compatriota canadense de Mitchell, se sentou ao piano para uma leitura fiel e emocionante de ‘Blue’.

Joni Mitchell canta Gorge Amphitheater, em Washington, nos EUA Foto: Justin J Wee / NYT

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Annie Lennox prestou homenagem com uma versão assombrosa de ‘Ladies of the Canyon’. Wendy Melvoin e Lisa Coleman, integrantes de longa data da banda de apoio de Prince, The Revolution, cortaram fundo com ‘A Strange Boy’, do diário de viagem de Mitchell, Hejira (1976). Melvoin disse: “Uma das razões pelas quais Prince nos contratou foi que nossas vozes eram parecidas com a da Joni”.

Foi um setlist vasto e eclético: não apenas os sucessos ou as canções que agradam ao público, mas reimaginações apaixonadas de todo o catálogo de Mitchell, como a faixa-título romanticamente tranquila do álbum Night Ride Home (1991) e o ardente comentário social ‘Sex Kills’, de 1994. Um destaque foi ‘Amelia’, uma meditação vibrante e etérea sobre liberdade e fuga.

Os vocais de Mitchell soavam especialmente musculosos, e o músico e produtor Blake Mills a acompanhou com graça e agilidade. Os backing vocals de Lucius, a percussão de Marcus Mumford e a guitarra e os vocais de Celisse Henderson (a quem Mitchell, com admiração, chamou de “a lady Jimi Hendrix”), entre outros músicos, completaram a exuberância do set.

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Mitchell não consegue mais atingir aquelas notas altas de canário. E daí? Como ela disse na noite de sábado na sonora ‘Both Sides Now’, “Algo se perde, mas algo se ganha na vida todo dia”. O que Mitchell ganhou foi um bom domínio de seu suntuoso registro mais grave – uma voz andrógina e onisciente, como uma deusa sábia e benevolente.

Dado este inesperado terceiro ato como intérprete, Mitchell se tornou engenhosa com aquilo que outras pessoas podem ver como possíveis limitações. Enquanto ela e os músicos ao seu redor cantavam, a bengala que ela usa para ajudar na mobilidade – no sábado, a bengala trazia uma cabeça de lobo brilhante na ponta – virou um instrumento de percussão e um cetro real.

Com o passar da noite, Mitchell foi ficando cada vez mais tagarela, contando histórias deliciosas sobre amigos e parceiros como Bob Dylan e Van Morrison. Ela se lembrou da vez em que Prince a convidou para subir no palco para cantar durante a turnê Purple Rain: ela confessou que não sabia a letra da faixa-título e ele a tranquilizou, dizendo que eram só duas palavras.

Embora Mitchell rivalize com qualquer ícone do rock, ela nem sempre teve o respeito de seus contemporâneos homens ao longo da carreira. Lennox, em um dos monólogos mais sinceros da noite, reconheceu: “Antigamente, eram pouquíssimas de nós, mulheres, fazendo o que fazemos”.

Desde que Mitchell se recuperou do aneurisma, porém, o mundo parece estar correndo atrás do tempo perdido, reconhecendo tardiamente sua extraordinária influência na música popular e concedendo a ela um prêmio atrás do outro. Nos últimos anos, ela recebeu uma homenagem do Kennedy Center, o prêmio MusiCares Person of the Year da Recording Academy e, mais recentemente, o Prêmio Gershwin de Canção Popular da Biblioteca do Congresso.

Tantos louros podem acabar pesando na cabeça, mas Mitchell acolheu toda essa fanfarra com uma leveza divertida – uma gargalhada e uma nova rodada de pinot grigio. Além de mais música, claro. Ela cantou algumas versões animadas de clássicos do que ela chamou de “dias de rock ‘n’ roll” – ‘Love Potion No. 9′, ‘Why Do Fools Fall in Love’ – mas encerrou com o que ela apresentou como uma “canção do Frank Sinatra”, ‘Young at Heart’.

“Viva a velhice!”, ela exclamou com uma risada no fim da noite. Como se isso não fosse o que ela já havia dito nas entrelinhas de todo esse show surpreendente.

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TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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