RIO - Em casa de bamba, diploma na parede não quer dizer nada. Terminada a fase escolar, Julião Pinheiro não sofreu pressão dos pais, o compositor Paulo César Pinheiro e a cavaquinista Luciana Rabello, para decidir que rumo tomar. Ainda que ninguém o tenha induzido, parecia natural que o rapaz seguisse o caminho aberto pela família, que inclui ainda o violonista Raphael Rabello (1962-1995), irmão de Luciana, e Paulinho da Viola, cunhado. “Julião que escolheu assim. Sempre deixamos os dois filhos à vontade para descobrir o próprio destino, mas deve estar nos genes, porque os dois são extremamente musicais. Achei que em algum momento a música iria tomar conta”, disse Pinheiro, referindo-se também à filha Ana, que toca cavaquinho e canta no disco.
A definição de Julião veio agora, com o lançamento do primeiro CD, Pulsação, só com músicas suas em parceria com o pai. São 15 de “umas 50” composições que eles têm juntos. “Comecei a compor com uns 20 ou 21 anos. Na primeira que fiz com meu pai, estava meio inseguro, sem saber se estava bom, mas ele gostou, fez letra. Aí, quando vi tudo pronto, me dei conta da qualidade, me deu aquela empolgação, e fiz um monte em pouco tempo”, conta o músico, de 28 anos.
A compreensão de ser filho de um dos grandes letristas do País, parceiro de João Nogueira, Tom Jobim, Baden Powell e muitos mais, autor de clássicos, como Espelho e O Poder da Criação, veio com o tempo. “Hoje, sei a importância dele, mas antes só o via como meu pai”, Julião lembra.
“Quando era adolescente, a gente fazia rodas de samba em casa com pessoas que depois seriam ídolos dele, como o Dino 7 Cordas. Ele ficava jogando videogame no quarto. Imagina o arrependimento!”, brinca Pinheiro. “Julião teve um leque grande para escolher, e optou pelo violão de sete cordas por causa do choro, que é a vida da mãe e era a do tio. Ele tocava o dia todo e hoje é um virtuose. É uma sensação muito boa ver que seu filho está nesse bom caminho. Pai e filho compondo juntos é algo muito raro. Existem irmãos compositores, mas acho que a gente pode estar inaugurando algo diferente.”
O CD tem sambas sincopados e dolentes. O vigor do violão de Julião e sua voz macia embalam o lirismo do pai. O morro pós-romântico está em O Morro e o Samba (“O samba, cá pra nós/ já não tem vez/ já não tem voz/ O rei ficou pra trás/ em cada morro que o samba mandou/ não manda mais”), que abre o CD. O disco tem temas tradicionais do repertório do samba: a desilusão do carnaval (Cortejo da Ilusão), a citação dos instrumentos que lhe são fundamentais (Pulsação), o enaltecimento da escola de samba (Verde e Rosa, Mangueira, Árvore Santa), o amor desfeito (Vento Que Passou), a mulata que balança e encanta (Quem É Aquela?, Bamba com Bamba), a relação de afeto íntimo com o ritmo (Samba É Bom, esta cantada com o pai).
O contato de Julião com a música se deu aos 8 anos, nas aulas de piano. Aos 12, a mãe lhe apresentou o violão de seis cordas. A triste Valsa de Eurídice, de Vinicius de Moraes, foi a primeira música que o menino conseguiu tocar. Depois, se dedicaria a peças eruditas. Na adolescência, afastou-se, para só voltar a estudar em meados dos anos 2000, na Escola Portátil de Música, criada pela mãe. Em seguida foi para a faculdade de música na Universidade Federal do Estado do Rio. “Não soube sempre que iria fazer música, mas também nunca pensei em outra coisa. Minha mãe se preocupava em não me influenciar”, disse Julião, que tocou na noite até decidir seguir na música profissionalmente.
O violão de sete cordas virou sua paixão. Dedicou-se a esmiuçar o que o tio, um dos maiores instrumentistas de sua geração, deixou registrado. Bebeu na fonte de Dino 7 cordas, que já havia sido um mestre para Raphael. “Eu ouvia e tocava sem parar. Tirei tudo que o Raphael tinha tocado, os discos em que acompanhou João Nogueira, Clara Nunes, Chico Buarque... Depois, veio o solista com o violão de nylon... Eu não saía de casa, passava a noite tocando”, lembra Julião, que perdeu o tio quando tinha 8 anos.
A primeira parceria com o pai gravada foi Tanto Samba, registrada em 2010 pela cantora Mariana Baltar. A opção agora por gravar o CD foi mais uma consequência de integrar uma família que vive de e para a música: o disco sai pela Acari Records, dos pais. Os arranjos foram entregues a Mauricio Carrilho, Cristóvão Bastos (que tocam no CD) e Miltinho, do MPB4, amigos da família chamados a participar de uma primeira audição, como Elton Medeiros, Ivan Lins e Áurea Martins.
“Honestamente, eu não sabia que o Julião seguiria na música. Esperei para vê-lo desabrochar. Quando percebi que fazer música era algo natural para ele, vi: isso é ser um compositor”, relata Luciana, que toca em 13 faixas (nas outras duas, o cavaquinho é de Ana, a filha mais velha). “Quando eu o via estudar, dedicado, num canto, ficava comovida, porque foi o mesmo caminho escolhido pelo Raphael”, acrescenta ela.
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