A voz sumia aos poucos. “Samuel...” Uma pronúncia arrastada. “Samuel...” Ainda mais frágil, uma súplica de alguém prestes a desabar. “Samuel...” Um barulho cortou a ligação e Samuel Mac Dowell sentiu a alma esfriar. Desligou o telefone, apanhou o paletó e saiu às pressas de seu escritório, na Rua da Consolação com a Avenida Ipiranga, para o prédio nº 668 da Rua Doutor Melo Alves, nos Jardins. Minutos depois, às 10h15, chegava sem a elegância do homem que Elis Regina apresentara à família como seu namorado havia seis meses. Pedro e Maria Rita brincavam com as empregadas no playground quando Samuel entrou pela portaria e se aproximou transtornado. “Quem está lá em cima?”, indagou a Maria das Dores. “Elis e João. Mas estão dormindo”, respondeu a arrumadeira. “Dá a chave.” Subiu então até o 5° andar pelo elevador de serviço, entrou no apartamento e só parou diante da porta que dava para o pequeno átrio de entrada da suíte de Elis. Maria das Dores foi atrás. “Elis, abre”, gritou Samuel. Sem resposta, chamou mais alto. “Abre isso, Elis!” João estava acordado. Ouvia música no quarto ao lado quando percebeu que nada parecia despertar a mãe. Aumentou o volume do aparelho e bateu na parede com um cabo de vassoura para acordá-la. Ao ver que deixava marcas na pintura, parou para não levar bronca. Dores trouxe as cópias das chaves em uma caixa e Samuel testou quase todas até conseguir abrir a porta, mas se deparou com uma segunda também fechada – a do próprio quarto de Elis. Girou a maçaneta e percebeu que estava trancada com a chave por dentro. Com a força do desespero, bateu e chamou Elis várias vezes. “As ferramentas, traz as ferramentas”, pediu à arrumadeira.
Samuel desparafusou a roseta que protegia o buraco da fechadura e usou um alicate como martelo para bater sobre a chave de fenda e cortar a madeira. Sua intenção era alcançar a ponta da chave que trancava a porta por dentro para poder girá-la. Vinte minutos depois de chegar ao apartamento, ele entrava no quarto para ver a cena que mais temia. Dores já havia voltado ao playground para cuidar de Pedro e Maria Rita. João correu do quarto ao lado, mas foi impedido de entrar. “Vai brincar João, está tudo bem”, pediu Samuel. Elis estava caída com os olhos semiabertos, vestida com um roupão rosa e segurando o telefone com um dos braços estendidos. Seu lábio inferior estava roxo e seus pés, gelados. “Elis!”, chamou Samuel. Ao tentar levantá-la, sentiu que seu corpo pesava toneladas e que sua cabeça e seus braços pendiam no ar sem qualquer reação. O equilíbrio começou a perder para o desespero. Samuel recolocou Elis no solo e ligou primeiro para seu sócio, o advogado Marco Antônio Barbosa. “Deixe o que está fazendo e venha pra cá agora. E traga o doutor Álvaro.” Correu então até a sala para pegar a lista telefônica, voltou ao quarto e discou para todos os números do Hospital das Clínicas que encontrou. Na quarta tentativa, falou com alguém que solicitou que ele tentasse o 190. Atendido agora por um policial cheio de perguntas, Samuel abreviou: “Você tem que mandar uma ambulância. É urgente!” Voltou então para Elis e passou a sacudir seu corpo e a gritar seu nome várias vezes. “Elis, acorda!”
A secretária Celina chegou ao apartamento intrigada. “Cadê essa Elis que não atende telefone?”, perguntou da sala. Mas sentiu que aquela não era uma manhã comum e decidiu saber o que Samuel fazia na suíte da patroa. Ao entrar, olhou para o chão e reagiu com pavor: “Meu Deus, o que é isso?” Samuel chacoalhava Elis e suplicava por um sinal de vida. Ao ver Celina, ele pediu que discasse novamente para o 190, mas o atendente passou a fazer as mesmas perguntas. “Mandem logo essa ambulância!”, Samuel gritou ao fundo. Celina desligou o telefone e passou a ajudá-lo pressionando o peito de Elis enquanto ele tentava a respiração boca a boca. “Lili, fala comigo? Por favor, Lili, fala alguma coisa”, chorava a secretária, chamando por Elis do jeito que fazia quando as duas estavam a sós. Celina olhava cada traço do rosto pálido, a boca escura, as olheiras profundas, as mãos e os pés cada vez mais gelados. “Lili, pelo amor de Deus, respira!” O que estava ali não poderia ser Elis Regina – um corpo oco, sem reação, entregue às vontades alheias. Samuel ligou na portaria para avisar que uma ambulância estava a caminho. Minutos depois, uma sirene soou da rua. “Veja se chegou”, disse para Celina. Ela foi até a janela do quarto, olhou a rua da frente e não viu nada. “Não é a nossa ambulância.”
João, que brincava pelo prédio desde que Samuel o impediu de entrar no quarto, saiu pelo portão, atravessou a rua, entrou em um bar e comprou um saco de balas. Ao vê-lo retornar, o zelador João Francisco, já informado por um vizinho de que algo não ia bem no apartamento de Elis, não se conteve: “João, tem alguém doente na sua casa?” O garoto olhou para o saco de balas e respondeu baixo: “Acho que minha mãe está com gripe.” Apesar de ter visto o esforço de Samuel para abrir a porta, Maria das Dores também não pensou no pior. Imaginou estar Elis em um de seus sonos invencíveis, que ela mesma testemunhou em várias manhãs daqueles quase dois anos em que trabalhava para a família. Agora, esperava a patroa acordar para pegar o dinheiro e ir à feira. Por volta das 11h, cansou de esperar. Deixou as crianças com a babá Teresa e foi às compras com seu próprio dinheiro.
Samuel resolveu agir. “Cadê a chave do carro?”, quis saber. “O João Marcello deve estar com ela”, respondeu Celina. “Manda ele subir, eu preciso do carro agora.” Mas logo mudou de ideia. “Não, é melhor um táxi.” Desceram pelo elevador, ele com Elis no colo. Assim que chegaram ao térreo, Celina correu até a rua para chamar um carro enquanto Samuel esperava sentado em uma escadinha da entrada de serviço com Elis nos braços. O primeiro táxi que avistou foi o do português Manoel Gouveia, um Fusca ano 1976, branco, que reduziu a velocidade assim que Celina passou a gritar para que parasse. Sem conseguir identificar de onde vinham os gritos, Manoel ameaçou partir até perceber a moça em desespero. “Embica na entrada do prédio, rápido. É caso de vida ou morte!” Manoel deu marcha à ré, subiu na calçada, abriu a porta e ficou aguardando. Ao mesmo tempo, um segundo táxi chegou trazendo o amigo que Samuel chamara por telefone, Marco Antônio, e o médico de sua confiança, Álvaro Machado Junior.
Samuel ajeitou a manta usada para cobrir o corpo de Elis e se levantou para levá-la ao carro. Ao perceber que ele tinha dificuldades, o zelador João Francisco deixou a portaria e foi ajudá-lo, imaginando que trazia uma criança no colo. Quando viu o rosto pálido de Elis, tomou um susto. Samuel sentou-se no banco de trás do Fusca para levar a cantora no colo, mas não conseguiu ajeitar suas pernas, que ficaram descobertas e pendendo para fora do veículo. João Francisco correu para recolocar a manta que caía e percebeu que Elis estava molhada, exalando um leve cheiro de urina. Ao lado do motorista, Álvaro se posicionou de joelhos no banco do passageiro, de frente para Samuel, para poder examinar Elis enquanto o carro saía. Colocou a mão em sua testa e apanhou seu braço para sentir sinais vitais. Sem olhar para Samuel, concluiu algo que preferiu guardar para si. Samuel não quis perguntar nada. “Vamos para o Hospital das Clínicas”, pediu o médico ao motorista. Seu Manoel acendeu os faróis altos e partiu. Em outro táxi, logo atrás, vinham Celina e Marco Antônio. Às 11h30, chegaram ao pronto-socorro do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Maria das Dores voltou da feira ao meio-dia. Carregava sacolas pesadas e, antes de pegar o elevador, decidiu descansar por algum tempo sentada na mureta perto do portão. Um carro da Polícia Militar estacionou. Os policiais desceram e chamaram pelo responsável. Atendidos pelo porteiro Nicola e por João Francisco, pediram o número de seus documentos para o registro de uma ocorrência, justificando que, naquela manhã, tinham a informação de que um dos moradores havia cometido suicídio. “Não sabemos de nada disso. Houve só uma senhora que passou mal e foi levada ao hospital por sua família”, respondeu Nicola. Os policiais fizeram mais algumas perguntas e se foram, aparentemente sem prosseguirem com a ocorrência. Dores, intrigada, ouvia tudo. Antes de subir com as compras, foi tirar a dúvida. “Nicola, quem é a mulher que saiu desmaiada daqui?” “Foi a sua patroa”, disse o porteiro. Dores pediu mais detalhes a Nicola. “Olha Dores, acho que a dona Elis estava morta quando saiu.” A empregada deixou as sacolas no chão e colocou as mãos na cabeça ameaçando cair em desespero. Subiu rápido pelo elevador e encontrou Teresa no apartamento com as crianças. A babá não tinha certeza, mas fez sua suposição baseada na cena que pôde ver à distância. “Ela devia estar morta porque estava muito pequenininha.” No instante em que Samuel saiu com Elis nos braços, Teresa estava no térreo cuidando de Pedro e de Maria Rita. Ela distraiu a pequena quando percebeu que as coisas não estavam bem, porém não conseguiu desviar a atenção de Pedro.
O garoto viu tudo do playground – Elis passar desacordada nos braços de Samuel, entrar em um carro estranho e sair sem dizer tchau. Aquilo que os grandes não explicavam ganhava a interpretação de uma criança de seis anos de idade: a mãe foi passear. Duas horas e meia após sair com Elis nos braços, Samuel voltava irreconhecível, acompanhado pelo amigo Marco Antônio e pelos irmãos Carlos e Beatriz. Foi até o quarto de Elis e lá ficou por algum tempo. Antes disso, Dores entrou no cômodo e retirou de lá uma garrafa de Cinzano caída no chão, com um resto da bebida. Rogério, tio de Pedro, também andava por ali visivelmente atormentado. Às 15h30, chegou uma equipe de técnicos do Instituto de Criminalística da Polícia Científica. Analisaram os aposentos, fotografaram as portas e os móveis e se retiraram, anotando em seu laudo técnico que “face ao grande número de pessoas no apartamento, pressupõe-se intensa movimentação das mesmas em seu interior, particularmente na suíte da cantora. Nestas condições, o local se torna totalmente inidôneo para a perícia.”
Cesar Camargo Mariano, pai de Pedro, passou por ele sem muitos carinhos. Seus olhos estavam tristes e vermelhos, sua barba feita e um braço enfaixado. De tudo, o mais estranho era o fato de estar ali pela primeira vez em pouco mais de seis meses, desde que havia se separado de Elis. O menino dirigiu-se aos adultos para saber o que havia de errado. “Nada Pedro, vai brincar”, disse uma das empregadas. O telefone da casa tocou e seu irmão João atendeu. Era o jornalista de uma emissora de rádio: “Bom dia. Por favor, é da casa da Elis Regina?” “É, mas ela não está”, respondeu o garoto. “É só para confirmar: soubemos que ela morreu nesta manhã, é isso mesmo?” Com a maturidade de um menino de 11 anos, João sorriu sem graça daquilo que lhe pareceu piada, desligou o telefone e voltou a brincar. Pedro passou pela sala, ligou a TV e se sentou para assistir a um desenho no instante em que um plantão do Jornal Hoje, da Globo, começou a lhe dar as respostas que os adultos haviam negado. “Morreu nesta manhã a cantora Elis Regina.” O menino correu de volta aos grandes e cortou a conversa com a urgência das crianças: “Pai, a televisão está falando que a mãe morreu. É verdade?” Os adultos já sabiam de tudo, mas só agora percebiam que era hora de cuidar dos pequenos. O silêncio tomou conta da casa e os olhares ficaram sobre Pedro por uma eternidade. Cesar o levou para o quarto com sua irmã Maria Rita para tentar dizer uma verdade na qual ele mesmo custava a acreditar. A mulher que na noite anterior colocou os filhos para dormir com um beijo em cada um não voltaria mais.
A notícia saiu como um tiro. Milton Nascimento estava com alguns amigos em uma praia da zona sul do Rio de Janeiro quando, inexplicavelmente, sentiu que deveria ir para casa mais cedo. Ao entrar, a empregada o recebeu com um comentário. “Seu Milton, o senhor viu que a Elizeth Cardoso morreu?” “Elizeth? Tem certeza? Que estranho”, pensou ele. Milton ligou a TV e se deparou imediatamente com o rosto de Elis tomando a tela inteira. “O corpo da cantora está sendo velado no Teatro Bandeirantes, em São Paulo”, dizia o noticiário. Um furacão devastou os sentidos de Milton, tornando-o sem voz para gritar e sem ouvidos para atender ao telefone da casa, que passou a tocar impiedosamente.
Assim que os amigos chegaram, souberam da notícia e perceberam seu estado de choque. Olharam-se e decidiram colocá-lo em um carro para seguirem em silêncio até uma praia deserta e distante. Quando avistou um barco atracado, vazio, Milton disse apenas: “É aqui.” E ali ficou, por um dia inteiro. Gal Costa assistia TV em casa, também no Rio. A notícia a mergulhou em um estado depressivo que levaria dias. Jair Rodrigues se preparava para dar uma entrevista em uma emissora de rádio em Santos, no litoral de São Paulo, onde estava para uma apresentação. Sem jeito, o locutor o avisou, ainda fora do ar: “Seu Jair, desculpe, temos de dar uma notícia triste agora.” Jair perdeu o chão, cancelou o show e voltou para São Paulo. Caetano Veloso estava em Ondina, na Bahia, quando o fato lhe chegou por outras pessoas que souberam pela TV. Aflito, queria mais explicações, preocupado com os filhos da cantora, expostos a um noticiário que associava a morte de Elis ao uso de drogas. João Bosco descansava em seu isolamento de verão com a mulher Angela e o filho Francisco nas praias de Marataízes, no litoral sul do Espírito Santo. Sem rádio, TV nem telefone, estava em casa quando um vizinho veio até ele: “Rapaz, que pena que sua amiga morreu”. “Que amiga?”, quis saber. “Você não viu que a Elis Regina morreu?”
João ouviu aquilo como uma brincadeira. Mas o rapaz foi entrando em detalhes e sua incredulidade começou a virar pavor. Saiu às pressas para um posto telefônico no centro da cidade e ligou para suas fontes no Rio de Janeiro. Era verdade, a pior que poderia ouvir. Edu Lobo tomava sol na praia de Ipanema. “A Elis morreu!”, gritou uma mulher ao seu lado com um rádio de pilha ligado. Ao contrário de João, Edu não teve dúvidas. Mulher com esse nome, Elis, só havia uma. Quando o rádio do Puma conversível de Luiz Carlos Miele começou a dizer que Elis havia morrido, o produtor dirigia pelas ruas do Rio de Janeiro com a cabeça em coisas mais importantes do que as notícias do dia como, por exemplo, Elis Regina. Amigos de quando vibravam juntos nos shows das portinhas mambembes do Beco das Garrafas, dos tempos em que improvisavam refletores com cartolinas enroladas, Miele e Elis tinham cumplicidades que dispensavam provas físicas de amor. Podiam passar anos se ver que o alicerce não rompia. Pois justamente naquele final de manhã, bateu em Miele uma vontade incontrolável de ver a Baixinha. Poucas horas antes, ele havia pedido a um empregado que enviasse a ela uma carta pelo correio em retribuição a um cartão carinhoso que Elis lhe mandara com dizeres cheios de entusiasmo e citações do arcebispo Dom Helder Câmara.
Sua resposta era na medida para tirar o riso mais escandaloso da amiga, aquele que ela dava de olhos fechados e com a cabeça para trás. “Elis, com licença de Dom Helder Câmara, eu estou com uma puta saudade de você. Como é que eu faço pra te ver agora?” O rádio do carro insistia na notícia. Ouvir o nome da cantora na mídia era comum, mas aquilo começava a ficar desconfortável. “Mais de vinte mil pessoas já passaram pelo velório, que está sendo realizado em São Paulo. Elis tinha 36 anos...” Miele desligou o rádio e seu cérebro se comportou como um cão de guarda a protegê-lo, acionando um mecanismo de sobrevivência para criar uma notícia paralela que o salvasse de um provável acidente automobilístico: “Puxa, a mãe da Elis... Que coisa, a mãe da Elis morreu.”
A mãe de Elis quase morreu. Um clarão a fez perder as memórias dos minutos que antecederam e de outros tantos que se seguiram à notícia de que sua filha estava morta. Dona Ercy Carvalho Costa só sabe que sua maior tragédia veio pela televisão, e mais nada. Senhora de punhos largos que já eram motivo de troça entre os irmãos quando criança, Ercy se segurou ajudada por uma genética que parecia lhe garantir vida eterna, só atingida por uma diabetes mas reforçada pelo copo diário de leite de cabra que entornou durante anos de sua infância. Com os ossos de aço e a alma de ferro, não havia doença que parecia derrubá-la. Ao se tornar mãe de Elis, primeiro, e de Rogério, depois, sentia que passara seus poderes aos filhos pelo sangue. Um estrabismo genético era o único defeito de fábrica em Elis e, ainda assim, daqueles que os médicos diziam “isso não mata ninguém”. Elis e morte, aliás, eram duas palavras que não combinavam na mesma frase nem naquela manhã nem nunca. Sua filha Elis Regina? Bobagem. A TV insistia que ela estava morta. Já falava em velório, enterro, drogas. Era só refletir com frieza para ver que não havia sentido naquilo. Sua Elis Regina tinha energia para ser sol ou tempestade, nunca chuvisco. Das drogas, o coração de mãe dizia, jamais de aproximara. Sua força parecia pronta para mantê-la por séculos. Só podia ser engano. Além do mais, aquela Elis pertencia a uma família em que as senhoras não podiam deixar o mundo assim, sem aviso prévio.
Serviço
'Nada Será Como Antes' (Editora Master Books - 424 páginas. Preço: R$ 49,90)
Lançamento nesta terça-feira, 17/3, das 18h30 às 21h30
Livraria Cultura do Conjunto Nacional
Avenida Paulista, 2073. Tel: 3170-4033
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