Uma história é ter a ideia do disco, outra é ter o disco no palco. E depois que o coloca em cena, Lenine costuma espremê-lo bem, entregando-o à ação do tempo. São quase três anos que seguram Carbono de pé. “E eu acho pouco”, diz. “Eu queria ter ido a muitas cidades que ainda não fui”. Carbono é a peça que encerra o que o cantor chama de trilogia, iniciada com Labiata (2008) e Chão (2011). O repertório volta a ocupar um palco paulista nessa sexta-feira, às 22h, na casa de shows Tom Brasil.
Manter o show na estrada sem sucateá-lo. Essa é uma missão, segundo Lenine, do músico em tempos de crise. “Há uma questão econômica séria aí, mas eu continuo conseguindo fazer esta equação.” Carbono é considerado por boa parte da crítica não só o melhor da tríade como um dos melhores momentos de Lenine. Não é tecnicamente tão complexo quando Chão, que propunha uma sonorização especial no ambiente, mas traz também uma proposta de arranjos cheios.
Sua tropa de choque conta com alguns nomes que o acompanham há 25 anos. Bruno Giorgi (bandolim, guitarra, efeitos e vocais) e JR Tostoi (guitarra e vocais) são também produtores do álbum. Os outros são Guila (baixo, synth e vocais) e Pantico Rocha (bateria e vocais). Há, no disco, participações de Nação Zumbi, Orkestra Rumpilezz (Salvador), Martin Fondse Orchestra (Amsterdam) e dos músicos Carlos Malta (sax), Marcos Suzano (percussão) e Ricardo Vignini (viola).
Lenine descreve Carbono como uma espécie de disco de uma música só. Ou quase isso. A ideia é que a narrativa se mantenha de uma canção e outra, diminuindo o tempo de intervalo entre elas. Mesmo que, aparentemente, não tenham elementos em comum, estarão ligadas pela narrativa. É assim que aparecem Castanho (Lenine/Carlos Posada), Simples assim (Lenine/Dudu Falcão) e, o que pode ser considerado um hit, Cupim de Ferro (Lenine/Nação Zumbi). O show vai trazer também músicas do discos Olho de Peixe, Na Pressão e O Dia em Que Faremos Contato.
O violão de Lenine, por mais que seus caminhos busquem a surpresa aos fãs e a si mesmo, segue sendo o centro de sua música. Foi o violão quem anunciou primeiro as grandes transformações na música brasileira. Dilermando Reis, Dorival Caymmi, João Gilberto, Gilberto Gil, Moraes Moreira, Djavan, Filó Machado, Yamandú Costa. As novidades vieram sobretudo nas seis cordas, fossem elas alinhadas a discursos mais jazzísticos, fossem nas mãos de leigos. A Tropicália nasceu ao violão e a jovem guarda também. Sem as seis cordas não existiria bossa nova. Lenine é um ponto na linha de uma evolução que tem importantes contribuições na renovação de linguagem. Mas o que é o violão do pernambucano Lenine?
Explicada assim, tecnicamente, fica tudo mais frio. Se os compassos que usa são quaternários, de quatro tempos, as cordas de seu violão são puxadas nos dois últimos fracos (duas colcheias), criando um efeito de contra com o tempo forte. É sua identidade, o que lhe dá o suingue e o que o faz dialogar tão bem com os tambores do maracatu. Seu violão, que não tem as harmonias mais trabalhadas, traz afinações abertas ou a sexta corda em ré, o que influencia em seu modo de compor, além de uma função percussiva ainda mais presente do que a que se encontra nas ideias de Gilberto Gil. O conjunto é algo tão marcante que poderia fazê-lo viver o dilema do artista que não se reinventa, mas que se autoplagia. Afinal, se seguir apenas a primeira intuição, o artista pode virar compositor de uma canção.
“Eu não me preocupo muito em me repetir. Costumo dar ouvidos a uma senhora que sempre me acompanha chamada estranheza. E a deixo falar, nem sempre a levo muito a sério, mas acabo entronizando muitas coisas que ela me diz”. Ao mesmo tempo, ele diz estar à procura do diferente, da surpresa, da descoberta de outras mecânicas. Ele estaria aí incluindo a alternativa de tirar o violão do foco na hora da composição para estabelecer novas linhas de pensamento diante de um piano ou da voz crua? “Eu não sei o que farei em um próximo disco, mas sei que será outra mecânica. Eu tenho a sorte de ter três filhos e todos os três serem músicos. Eles me municiam muito com novas informações. Agora, fazer essa mudança radical, sem usar o violão, seria impossível. Quando paro para compor, estou sempre com ele debaixo do braço. Ele está sempre no início de tudo.”
A única exceção seriam aquelas criações que o pernambucano chama de “canções que já existiam”. As composições que chegam prontas, como se estivessem flutuando até que alguém as pegasse no ar. “Essas não precisam nem de instrumento para acompanhá-las”.
Desabafo. Lenine diz que sente o País ainda em turbulência, corrigindo o repórter quando ouve que passamos por um terremoto. “O que está vindo agora é o tsunami”. “Mas acho que precisávamos passar por isso, por essa fratura exposta. 90% de qualquer um dos três poderes está corrompido. Não existe mais tapete para colocar sujeira debaixo. O que eu acho é que deveríamos tirar todo mundo de lá.” Ele segue em um só disparo, sem respiro. “A Lei Rouanet foi demonizada, é muita podridão. Temos uma chamada bancada evangélica que nem é tributada, uma bancada ruralista do agronegócio que defende o interesse de poucos que já ganham muito.” E diz mais: “Desde o início, depois do impeachment, eu disse que deveríamos partir para eleições diretas. Mas temos de ter a lei da ficha limpa. Político tem de andar de transporte público, o Estado não tem de custear benefícios. Como dizia Paulo Leminski, o poder é o sexo dos velhos.”
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