Drake foi a gota que fez o copo de chorume transbordar. Ao cancelar seu show no Lollapalooza por razões não esclarecidas (fala-se em ganância financeira do cantor para além dos limites do contrato), ele escreveu ou mandou escrever uma nota de má vontade. Traduzindo para o português as poucas linhas que falam que o rapper não teria técnicos para vir ao Brasil “devido a circunstâncias imprevistas”, e sem nenhum lamento digno aos fãs brasileiros que sustentam sua fama por aqui, o que ele disse foi algo como: “Não encham, acordei sem vontade de ir para o Brasil, prefiro passar o final de semana na boate.”
Acontece que Drake fez um favor com seu desleixo e expôs os bastidores do viralatismo praticado pelos festivais que recebem atrações internacionais no País. Um viralatismo que está no centro da operação de uma receita milionária que consiste em oferecer regalias e relaxar multas por quebras de contratos aos artistas internacionais (afinal, são eles que vão atrair patrocinadores e a maior faixa dos compradores de ingressos) ao mesmo tempo em que achatam o cachê dos brasileiros pagando valores muito abaixo do que pagariam outros festivais nacionais. Usando o ‘status’ de que estão ali para mudar vidas e consagrar carreiras, chegam a oferecer R$ 14 mil a um grupo que custa no mercado R$ 310 mil. Uma fonte ouvida pela reportagem fala em valores “10 ou até 15 vezes menor do que pagam outros festivais”.
Há também abusos internos relatados por outras fontes, como os preços cobrados por empresas que operam os canhões de papel picado contratadas pelo festival (aqueles canhões que o Coldplay ama). Pois a mesma firma que cobraria R$ 5 mil por dois tiros dados em um show feito em uma casa particular de São Paulo chega a cobrar R$ 30 mil pelos mesmos dois tiros disparados dentro do festival. Ou seja: tem artista brasileiro valendo menos do que um tiro de papel picado. É um sequestro afetivo do artista nacional, que jamais vai fazer alguma denúncia para não se “queimar” junto às poucas operadoras de shows no país. Ao contrário de muitos internacionais, que topam vir ao Brasil depois de negociarem seus valores para cima, os nacionais sonham em estar ali nem que seja por um pão com mortadela.
O fã tem aceitado tudo silenciosamente sem perceber a roda que está girando no lombo. Quando um nome como Drake é anunciado, ele faz posts, coloca a marca do festival nos trends, sua para comprar ingressos que esgotam em segundos e valida, por antecipação, o ‘sucesso’ do evento – uma estratégia perfeita para que a operadora do festival atraia mais patrocinadores. Quanto à certeza de que os artistas virão, quem (além do fã) liga? Além de o seguro contratado pelos nomes internacionais garantir o pagamento das quebras contratuais, algumas práticas de ressarcimento tiveram um afrouxamento durante a Covid, quando ninguém mais queria saber de tocar no país do então presidente negacionista e voltar para casa contaminado. Assim, ficou muito mais fácil mandar bananas para o Brasil horas antes do show. Sem riscos de sofrer retaliação por parte de fãs ultra engajados nas redes sociais, mas frágeis, imaturos e desmobilizados de ações coletivas (ações judiciais, entendam), nenhum responsável pelos cancelamentos em série teme sequer uma mancha no currículo. Troca-se o rapper pelo DJ e não se fala mais no assunto. A roda já foi girada. A grana já entrou.
Mas algo pode estar mudando. Além das notícias sobre a prática de trabalho escravo confirmadas dentro de Interlagos, falta de credibilidade, denúncias de cachês nacionais achatados e tratamentos diferenciados entre gringos e brasileiros podem fazer do Lollapalooza um lugar bem desagradável para um patrocinador ilibado e de peso querer estar. Não adianta colocar mulheres pretas e pessoas trans nos palcos para tapar a escravidão dos bastidores. Aliás, já é hora de os artistas que defendem as igualdades também dizerem não. Isso, se as igualdades forem mais importantes do que suas carreiras, claro.
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