Sua pele tem algo de celestial, cobrindo um rosto que começa largo sob os cabelos loiros mas que afina delicadamente em direção ao queixo – tudo num branco rosado e uniforme que parece pensado para fazer explodir os dois olhos verdes, valorizados por sobrancelhas arqueadas fio a fio, e a boca, a grande boca dos tempos. Ela é perfeita. Simétrica e inatingível, fria nos olhos e quente nos lábios. Tão imaculada e tão distante da Madonna que os anos 80 nos prometeram.
Ver Madonna como uma boneca de cera, posando em ângulos previsivelmente instagramáveis para seus 18,5 milhões de seguidores, é a derrota de uma geração. A primeira mulher que nos fez duvidar das certezas sacras, que nos rebelou contra a culpa cristã, que beijou um Jesus negro, que beijou Britney Spears, que irritou dois papas, que nos iniciou com Material Girl, nos incendiou com Like a Virgin e nos finalizou com Like a Prayer, a mulher que nos invadiu transferindo contestações que passaram a ser nossas também, chega aos 64 anos precocemente entregue à ostentação de um belo fake e vazio.
O corpo é de Madonna e ela, que já fazia o que queria com ele em 1984, deve e tem de seguir fazendo. A história aqui não é sobre bocas, sobrancelhas e queixos esticados, mas de submissão, obediência e adequação de alguém que nos ensinou a lutar contra isso desde a infância. Madonna envelhece mal não naquilo que pode ser visto, seu corpo, mas no que tenta esconder sob toneladas de clichês visuais provocativos: uma indisfarçável desorientação geracional. E nem tudo por culpa de seus últimos álbuns ou de suas travas criativas para se manter segurando o farol.
Assim que a ainda milionária indústria da música pop descobriu que poderia lucrar mais se deixasse de tratar as cantoras negras como um seguimento de mercado e passasse a absorver suas ideias de afirmação e superação racial para criar novos ídolos de massa, o projeto Madonna começou a ser silenciosamente esvaziado. O novo poder instalava-se justamente no oposto de tudo o que sua loirice representava. Whitney Houston, nos 90, Beyoncé, nos 2000, e todas as cantoras surgidas dessas duas costelas a deixavam sem lugar de fala. Sem traquejo para transitar entre as novas brancas que a copiavam – Lady Gaga não lhe desceu redondo desde o início – Madonna começou a submergir quando bater na Igreja Católica perdeu a graça.
Se fosse negra, seria diferente? Sim e não. Negra, Madonna veria seus feitos potencializados pelas atualizações históricas. Sua coautoria na criação do grande negócio do pop, ao lado de Michael Jackson, seria hoje mais valorizada, e suas subversões religiosas diante da Igreja de dois papas, João Paulo 2º e Bento 16, que pressionou por um boicote a seu LP, pediu a proibição de sua entrada na Itália e a fez perder contratos publicitários milionários com a Pepsi depois de vê-la dançando à frente de cruzes em chamas no clipe de Like a Prayer, a fariam ganhar, em tempos de luta contra supremacias religiosas, uma estátua. Mas se fosse negra, Madonna talvez não tivesse sido lançada em 1982. Mulheres negras só eram aceitas no entretenimento se cantassem muito, e entre Madonna, que nunca cantou muito, e Tina Turner, um furacão, não havia nem o que pensar.
É cedo para isso, mas os sinais são de que Madonna começa a buscar relevância no único lugar onde ela é inquestionável: o passado. Foi lá que ela se tornou a primeira e única artista a chegar ao topo da Billboard por 50 vezes, a lista mundial do Spotify da época, e que venceu todos os prognósticos da própria família católica italiana que a batizou de Madonna, a Virgem Maria, para chegar a vender absurdos 300 milhões de discos. A menina que chegou a Nova York com 35 dólares nos bolsos para ser cantora, que vendeu Dunkin Donuts para sobreviver, cantou como backing vocal de artistas de talento contestável e venceu os traumas de um episódio de abuso sexual nas ruas da cidade seguia em frente para acumular uma fortuna estimada hoje em mais de R$ 4 bilhões. Um ativo proveniente de um espólio que deve ser ordenhado a cada ano, ainda que nenhum outro álbum de inéditas seja lançado.
Seus 40 anos de história na música são celebrados com o lançamento de uma coleção de remixes nesta sexta, 19. Ela mesma assina a curadoria de Finally Enough Love: 50 Number Ones, com 50 temas pensados para abranger, como diz a Warner, “todo o seu reinado nas pistas”. Enquanto a gravadora prepara mais “surpresas”, ela trabalha duro em um ato que os próprios artistas consideram ser tomado quando se fecha algo. O filme com sua história, sua cinebiografia, está em produção, com a própria Madonna assinando a direção e o roteiro e participando das audiências para saber quem irá interpretá-la nas telas. Julia Garner, da série Ozark, da Netflix, foi muito bem nos testes. Ao controlar cada passo de seus projetos de reavaliação, Madonna pode contar a história que quiser sobre si mesma e finalizá-la com um close bem dado no eterno rosto de uma garota de 25 anos.
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