Ao passar pelo Túnel Acústico, estrutura da autoestrada Lagoa/Barra no Rio de Janeiro, o músico e compositor Marcos Valle teve um estalo: seu novo álbum, que será lançado pela gravadora inglesa Far Out, deveria se chamar Túnel Acústico. “É isso! Minha vida é um túnel acústico, que mistura, que evolui. Se não fosse a música, eu seria um cara tristíssimo!”.
Reflexo dessa pluralidade e do fôlego com o qual as melodias de Valle se propagaram até os dias atuais é o show que ele apresenta nesta sexta-feira, 12, no Cine Joia, em São Paulo. Além de sua banda, o músico terá no palco as companhias de Emicida, Céu, Moreno Veloso e Rashid. Todos eles, de uma maneira ou de outra, já fizeram algo com Valle anteriormente. Pela primeira vez todos estarão juntos com ele no mesmo palco.
Ao melhor estilo do jazz - ou do rap, como prefere Valle - o encontro deve rolar solto, com muito improviso. Ele, aos 80 anos - 81, em setembro. Por exemplo, com Emicida, Valle cantará e tocará duas parcerias: Cinzento, faixa-título do álbum lançado por ele em 2020, e Pequenas Alegrias da Vida Adulta, presente no álbum AmarElo, lançado pelo rapper no ano anterior. Já com Rashid, outro rapper paulistano, a aproximação ainda é recente. Valle entrará flow dele.
Com Céu, com quem se apresentou no Festival Coala em 2023, deve cantar Não Tem Nada Não, de 1973, faixa do cultuado disco Previsão do Tempo. Os dois têm parcerias recentes. Uma delas é Reescreve, que saiu em Novela, álbum que a cantora lançou há pouco. A outra ainda é inédita e sairá em Túnel Acústico. Moreno Veloso também está em Cinzento e no Túnel.
Valle ficará no palco o tempo todo, até mesmo quando seus convidados interpretarem canções autorais. “Eu estarei em todas. Eu não saio do palco!”, diz, animado, esquecendo-se que ele que é a referência dessa moçada.
Ao contrário de companheiros de geração que já anunciaram a aposentadoria - casos de Milton Nascimento e, mais recentemente, Gilberto Gil - Valle não pensa em parar tão cedo. Demonstrando raciocínio ágil, Valle não titubeia ao responder a quase já pergunta obrigatória aos companheiros oitentões.
“Aos 80 anos, posso não ter a mesma forma de antes. Mas valorizo tanto, tanto, que tudo se compensa. O 80 era um marco na minha cabeça. Se eu passei por ele, está tudo certo com os 81. Vamos embora!”, comemora Valle.
Valle diz que “faz parte do seu show” se misturar com gerações diferentes da sua. O fato de sempre atrair novos artistas e conseguir renovar seu público após 60 anos de carreira ele credita ao que classifica com uma música “harmônica, melódica, mas com ritmo, e quase sempre dançante”. Tudo feito de maneira instintiva. E qual o nome dar à ela?
“Me perguntam muito. Chamam de ‘nova bossa nova’ ou de “drum and bass’. Nunca entendi muito bem essas nomenclaturas. O que é a música do Jorge Ben (Jor)? É a música dele! O que é a música do João Donato? Difícil defini-las. A minha é a música do Marcos Valle”, diz.
No exterior, a consagração em várias fases e novos projetos
O show de Valle no Cine Joia será uma espécie de despedida temporária dos palcos brasileiros. No começo de agosto ele fica quase um mês na Europa - onde os DJs não se cansam de sampleá-lo. Passará por cidades como Londres, Amsterdã, Zurique, Helsinque, Oslo e Tallin. Volta para o Rio para uma breve descanso e, em seguida, embarca para os Estados Unidos para shows em Los Angeles, San Diego, Seattle, Washington, Chicago, entre outros lugares. Estenderá a viagem ao Canadá. Em novembro, vai para a Argentina.
Filho direto da bossa nova, Valle fez sua primeira incursão aos Estados Unidos como músico em 1965, para acompanhar o músico Sérgio Mendes no projeto Brasil’ 65. Ficou um ano por lá e teve contato com figurões da música mundial, entre eles, o trompetista de jazz Dizzy Gillespie. Voltou sob protestos de Mendes, que ainda o queria ao seu lado.
No Brasil, viu a canção Samba de Verão, que ele havia feito um ano antes em parceria com o irmão Paulo Sérgio Valle - hoje, conhecido por ser o autor do hit sertanejo Evidências - estourar. Samba de Verão virou So Nice e se tornou uma das canções brasileiras mais regravadas mundo afora. Valle nunca mais foi o mesmo - e nem sua música.
Afastou-se, mas só um pouco, da bossa nova tradicional - ele mesmo não nega que ela, até hoje, está em suas melodias. Abriu sua música para tudo o que ele ouvia anterior ao movimento liderado por João Gilberto e Tom Jobim, como o baião e o samba. Virou pop antes mesmo do termo se popularizar - ou não ser sinônimo de música puramente comercial.
As viagens cada vez mais frequentes aos Estados Unidos proporcionaram a Valle ver de perto o movimento Black Power em Los Angeles. Mais uma vez com o irmão Paulo Sérgio, compôs o blues Black Is Beautiful, entregue para a cantora Elis Regina - parceira dos tempos de bossa.
A música foi censurada por conter os versos “que melhore o meu sangue europeu”. No Festival Internacional da Canção, em 1971, o ator e cantor Tony Tornado, ao ver Elis cantar Black is Beautiful, subiu ao palco e cerrou o punho, tal qual os Panteras Negras, grupo que combatia a discriminação racial nos Estados Unidos. Saiu do palco algemado. “Tony me disse que, para escapar de uma pior, disse: ‘mas essa música foi feita por dois caras loiros!’”, lembra Valle.
Em 1975, sentiu que precisava de mais uma virada na carreira e passou cinco anos nos Estados Unidos. Atraiu a atenção da cantora Sarah Vaughan, do músico e compositor Leon Ware e do grupo Chicago. Nos anos 1990, sua música foi redescoberta pelos americanos. Em 2020, Valle gravou para o projeto Jazz is Dead, uma mistura de black music, rap e jazz. Foi o suficiente para uma nova onda de interesse se aproximar.
“Costumo apresentar no exterior as mesmas canções que faço no Brasil. Eles querem ouvir Estrelar, Samba de Verão, Mustang Cor de Sangue, Batucada Surgiu...Algumas instrumentais. Eles querem ouvir muita coisa de ritmo. Conhecem tudo”, conta Valle.
Na Europa, a gravadora inglesa Far Out vai lançar, em setembro, o álbum Túnel Acústico, com 12 músicas, coproduzido pelo músico Daniel Maunick. É o sétimo álbum que Valle faz para a companhia.
“Queria justamente mostrar, em cada faixa, um pouco das minhas influências. Mesmo quem nunca ouviu nada meu, vai entender a música que eu faço. Ele é rico de conteúdo”, adianta Valle. Em português, o disco terá parcerias com Céu e Moreno Veloso, além de faixas instrumentais.
Ainda há uma preciosidade: a gravadora recuperou uma fita demo que Valle gravou com Leon Ware (1940-2017) em 1978. O processo, segundo o músico, foi parecido com o que fizeram com a canção Now and Then, dos Beatles, com o uso da inteligência artificial. A música chama Feels So Good. Nos shows que fará por lá, Valle cantará acompanhado pela voz do antigo parceiro.
Serviço:
- Marcos Valle e convidados
- 12/7, sexta-feira, 22h
- Cine Joia. Pça. Carlos Gomes, 82, Liberdade.
- R$ 130/R$ 200.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.