Em 1955, Milton Nascimento tinha 13 anos, estava aprendendo a cantar e, para sua tristeza, chegando à puberdade.
“Quando eu comecei a ver que a minha voz estava engrossando, eu falei, ‘eu não quero cantar mais, não’”, lembrou Milton Nascimento, uma das figuras musicais mais importantes do Brasil, em entrevista há cerca de duas semanas. “Porque os homens não têm coração.”
Ele disse que chorava quando um canto suave e expressivo entoou na rádio. Era Ray Charles, cantando Stella by Starlight. “Depois que eu ouvi isso, eu falei, agora dá para cantar.”
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Nas seis décadas seguintes, floresceu uma das grandes vozes da música, uma força etérea que percorria oitavas com emoção e energia, deslizando perfeitamente entre um barítono aveludado e um falsete celestial.
A voz singular de Milton e sua ascensão às notas mais altas ajudaram a influenciar uma geração de artistas. Em entrevista, Paul Simon descreveu sua voz como uma “mágica sedosa”. Philip Bailey, cantor da Earth, Wind & Fire, comparou-a com “uma bela praia brasileira”. Sting disse que havia “verdade na beleza” dela.
No Brasil, onde a voz de Milton conduziu desde músicas introspectivas àquelas icônicas, a nação cunhou uma metáfora ainda mais grandiosa: “a voz de Deus”.
Agora, essa voz mudou mais uma vez. Na sexta, 9, Milton Nascimento lança o que ele diz provavelmente ser seu último álbum, Milton + Esperanza, uma colaboração terna, quase onírica, com a jazzista americana Esperanza Spalding, após 15 anos de amizade entre os dois. Spalding arranjou e produziu o álbum, tocando baixo em todas as faixas, e a dupla canta junto em quase todas elas. Isso inclui um melancólico dueto em português entre Milton e Simon – a primeira música que o brasileiro compôs e lançou após anos de hiato.
Não é nenhuma surpresa que, aos 81 anos, sua voz não seja mais a mesma de outrora. Está mais baixa, mais instável e, às vezes, requer mais esforço para alcançar as notas que antes até ultrapassava. No entanto, ela mantém um inegável aconchego. Ela está amadurecida, amaciada. E isso garante uma presença reconfortante em todo o álbum, como a de segurar a mão de um avô.
“Ele tem uma essência especial, e isso transparece na música”, disse Spalding, 39 anos, envolta por um xale em uma padaria do Rio de Janeiro em um dia de vento no inverno. “Mas é algo que ele irradia o tempo todo. Quando ele está assistindo a novelas, eu digo: ‘Ah, sim, foi você quem escreveu essa música’”.
“É misterioso”, acrescentou ela, “e é lindo”.
Ela tinha razão. Poucos dias depois, Milton irradiava uma aura serena e inconfundível, sentado em seu sofá no Rio, de moletom e Crocs, em frente à televisão, de onde assiste a horas de novela todos os dias. Ele sorria levemente, elogiando todas as pessoas que mencionava e, por duas horas, passou de uma história a outra.
Ele contou de suas colaborações com os grandes nomes do jazz Wayne Shorter, Herbie Hancock e Pat Metheny; falou de seu primeiro encontro com Paul McCartney no ano passado (uma foto emoldurada do episódio foi pendurada); colocou para tocar uma música que escreveu sobre sua mãe (“ela me ensinou o que é amar”); e descreveu vários encontros possivelmente extraterrestres (em um deles, ele viu o que acredita ser um OVNI entrar em um túnel do Rio).
A conversa seguiu seu fluxo de consciência. Sua voz era suave, suas respostas curtas e sua memória frequentemente falhava. À sua frente, havia um porta-comprimidos; atrás dele, cinco Grammys. Do lado de fora, operários construíam um novo pátio. Ele e seu filho tinham acabado de se mudar. O cantor não tem mais facilidade para andar, e seu endereço anterior tinha cinco lances de escada.
“Eu vejo as imagens dele antes da pandemia, e a impressão que dá é que se passaram 20 anos”, disse o filho adotivo de Milton Nascimento, Augusto, 31 anos, que administra os negócios do pai. “Minha agonia não é a questão profissional de ver que é o último trabalho dele; minha agonia é saber que eu não sei mais quantos anos eu tenho com ele aqui.”
Seu pai, no entanto, não queria falar sobre envelhecer. “Eu não penso muito nisso, não”, disse ele, encerrando o assunto. “Não, realmente, não penso.”
Milton Nascimento comentou certa vez que, a menos que um artista consiga encontrar um público, “você pode ser o maior gênio do planeta, mas vai acabar cantando no chuveiro”. Por décadas, ele encontrou um público que o venerava, mas admitiu que, após a gravação deste álbum, parou de cantar, até mesmo no chuveiro.
‘Uma grande síntese da melhor música brasileira’
Nascido no Rio em 1942, ele ficou órfão aos 2 anos quando sua mãe, empregada doméstica, morreu de tuberculose. A filha do patrão de sua mãe o adotou, e eles se mudaram para Minas Gerais.
Conhecido como “Bituca”, apelido que ganhou quando criança por “fazer bico” ao ser contrariado, ele cresceu em uma casa repleta de música. Sua mãe estudou música, e seu pai trabalhou em uma estação de rádio. Ele rapidamente aprendeu a tocar gaita, acordeão e violão.
Aos 20 anos, ele se tornava conhecido nos círculos musicais e, quando cantou três músicas originais no Festival da Canção de 1967, o público – e os outros competidores – ficaram impressionados.
“Era uma coisa espiritual. Eu me sinto da mesma forma até hoje, 57 anos depois”, disse o violonista Guinga, que também se apresentou na competição. “Ele ficou famoso da noite para o dia.”
Milton Nascimento rapidamente se tornou um dos maiores e mais influentes artistas do Brasil. Ele era prolífico e lançou mais de 50 álbuns, incluindo Clube da Esquina, um emotivo disco de 1972, gravado com um grupo de amigos músicos e considerado por críticos uma obra-prima.
Seu som era singular, misturando vários gêneros brasileiros, além de jazz, música clássica, rock e folk, criando uma música que é, por vezes, tanto agradável quanto inquietante. “Ele é uma grande síntese da melhor música brasileira”, disse o produtor musical e autor Nelson Motta. “Foi um ídolo para os músicos mais sofisticados, para os músicos mais ambiciosos.”
Milton colaborou com Elis Regina, Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque no Brasil, e com James Taylor, Cat Stevens e Duran Duran no exterior, entre muitos outros. Bailey disse em uma entrevista que ele e Maurice White – outro vocalista da Earth, Wind & Fire – viajaram ao Brasil na década de 1970 para estudar sua música. White se encontrou com Milton e “voltou delirando com a experiência”, disse Bailey. “No disco que gravamos na sequência, estávamos todos imersos na experiência Milton Nascimento.”
Spalding ouviu a música do brasileiro pela primeira vez quando era estudante da Berklee College of Music e um amigo colocou o álbum Native Dancer, lançado por Wayne Shorter em 1974, que começa com o falsete de Milton Nascimento. “Como é possível que isso exista na Terra e eu não sabia?”, ela se lembra de ter pensado. Hoje ela admite ficar incrédula quando alguém diz não ter ouvido falar dele. “É como se dissesse: ‘Você conhece Bach?’”, disse ela.
Spalding, que ganhou cinco Grammys, descreveu o músico como uma de suas principais referências. “Mesmo tendo belas progressões e melodias inesperadas no samba e em muitas músicas brasileiras, as dele são diferentes; foram absorvidas até a medula pelos brasileiros, e tenho certeza que isso afetou sua consciência como povo”, disse ela. “E ele está lá, sabe, em sua casa, relaxando, assistindo a novelas. Ele é marcante, mas não tenta ser.”
‘Como um mestre da pintura’
Em 2022, Milton Nascimento fez uma turnê de despedida pelos Estados Unidos, Europa e Brasil, cantando sentado com uma capa colorida enquanto a banda tocava ao seu redor. Spalding se juntou a ele nos palcos de Nova York e Boston.
Certa noite em um jantar, o filho de Milton sugeriu de forma espontânea: Spalding e Milton deveriam fazer um álbum juntos. Mas teria que ser rápido, para aproveitar que, com a turnê, a voz do pai estava em forma.
Spalding, embora sobrecarregada de compromissos, disse imediatamente que sim. “É para isso que podemos cancelá-los”, disse ela. (Ela havia colaborado havia pouco tempo em um projeto de outro herói pessoal seu: a ópera Iphigenia, de Shorter)
Após se preparar em sua casa, em Portland, ela viajou para o Rio seis vezes no ano passado para as gravações. Ela logo percebeu que não seria um álbum “de estúdio”. Seu parceiro se sentia mais confortável em casa, principalmente na sala onde está sua televisão, entre as transmissões das novelas. Eles encostaram colchões nas paredes para melhorar o som.
“Ele estava assistindo à novela, daí simplesmente virava a cadeira e começava a gravar”, disse ela.
Isso não significa, no entanto, que ele estivesse acomodado.
“A percepção sofisticada que ele tem é incrível”, disse Spalding. Ela se lembra de ter tocado a composição de nove minutos de Shorter que encerra o álbum e perguntar a Milton o que ele achava. “Ele disse: ‘Toque do começo’”, disse ela. Em seguida, ele improvisou os vocais. “Ele entendeu a textura e a composição, sabendo exatamente onde encaixar seu som”, disse ela. “Como um mestre da pintura.”
A artista disse que, embora a idade tenha limitado sua voz, isso acrescentou algo.
“Fisicamente, os corpos idosos não conseguem fazer as mesmas coisas que faziam 30 ou 40 anos antes. Mas o senso musical e a consciência da composição, da estrutura, do som e do timbre parecem ainda mais sofisticados e refinados”, disse ela, “mesmo que eles não falem nem gesticulem tão rápido quanto se costumava.”
“Isso também foi muito animador. Tipo, ‘meu Deus, podemos continuar fazendo isso até os 80 anos?”, acrescentou. “Continuar refinando e condensando o que sabemos, o que ouvimos?”
Paul Simon, um ano mais velho que Milton e ainda compondo e gravando, disse que a idade afeta mais o canto do que o toque de um instrumento. E lembrou que “Tony Bennett produziu coisas com quase 95 anos”. O aspecto mental é afetado de uma maneira diferente. “O pensamento fica mais claro”, disse ele, “mas é mais lento”. (Simon disse que também está trabalhando em um novo projeto: “Enquanto esse impulso existir, eu o sigo”.)
Milton + Esperanza ressignifica faixas originais de Milton Nascimento; canta músicas de Shorter, dos Beatles e de Michael Jackson; e inclui músicas novas que Spalding disse ter escrito pensando em Milton Nascimento. O álbum apresenta Paul Simon, Guinga, a cantora de jazz Dianne Reeves, os compositores Lianne La Havas, Maria Gadú e Tim Bernardes, além do saxofonista de jazz que se tornou flautista Shabaka Hutchings, entre outros.
O carinho entre Milton e Spalding é palpável no álbum, com eles conversando e rindo nos intervalos. Em alguns momentos, a voz dela parece pegar a dele pela mão, guiando-o pelas melodias. O resultado é um álbum que parece um tributo ao homem que canta em todas as faixas.
No mês passado, Spalding voltou ao Rio para apresentar parte do álbum à série Tiny Desk, da rádio pública americana NPR, da casa de Miton. Sua sala de estar foi transformada em cenário, com flores, tapetes estampados e vários discos de ouro e platina na parede. Spalding sentou-se acima dos outros músicos com seu contrabaixo, e o cantor estava à sua frente, com uma boina e óculos escuros.
Na primeira faixa, Outubro, a dupla canta em uníssono um verso que sobe gradualmente para notas mais altas. Na primeira tentativa, enquanto Spalding subia o tom, ela acenou para que o artista a acompanhasse. Mas ele não conseguiu. Ele ergueu uma mão, desistindo.
Ela sorriu gentilmente e assentiu. A banda começou outra vez.
Alguns minutos depois, quando o crescendo recomeçou, suas vozes se projetaram, e eles mantiveram a nota alta. Quando a melodia terminou, e os instrumentos assumiram, Spalding olhou Milton e sorriu com orgulho, como se dissesse: “Eu sabia que você conseguiria”.
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