Uma outra história da música começou a ser contada na última década, por meio de gravações, filmes e livros. Ela permaneceu soterrada, recalcada por séculos. Finalmente públicos mais amplos começam a se dar conta de que a história da música não é só a que conhecemos: uma sucessão de homens brancos geniais, de Bach (século 18) a Stravinsky e Villa-Lobos já no século 20.
Aos poucos, as histórias “oficiais” estão sendo desmontadas. Ou melhor, ampliadas. Sempre houve diversidade, só que a narrativa eliminava as diferenças, não as mostrava para o público.
Um exemplo: não há uma representação visual sequer de Anna Magdalena Bach (1701-1760), a segunda mulher de Johann Sebastian Bach (1685-1750), que abandonou sua carreira de cantora, deu-lhe 13 de seus 20 filhos e a quem o compositor dedicou um álbum conhecido de todo estudante de piano principiante, o Pequeno Livro de Anna Magdalena Bach.
Das que tentaram a composição, nos últimos quatro séculos, ao menos temos representações visuais. Mas elas enfrentaram um meio ambiente extremamente hostil já dentro de casa. Quase todos os pais e maridos as reprimiram.
O maior exemplo, neste quesito, é o de um dos casais mais cultuados do romantismo musical do século 19: Robert e Clara Schumann. Ambos pianistas e compositores. Ele teve um problema numa das mãos e limitou-se à composição; ela, desde o casamento com Robert em 1840, abandonou a composição, obedecendo tacitamente ao marido. Como pianista, sustentou a família numerosa (tiveram sete filhos).
Algumas compositoras conseguiram furar a bolha do preconceito de gênero. E ocuparam um importante espaço público na vida musical europeia do século 19. É o caso de Emilie Mayer (1812-1883). Ela rompeu outro preconceito vigente, o de que as mulheres deveriam limitar-se ao cultivo dos gêneros menores, das peças para piano e das canções para voz e piano.
Emilie compôs oito sinfonias, 15 aberturas concertantes sinfônicas. Regeu suas obras sinfônicas pelo continente e foi duplamente apelidada, ora de “Beethoven feminina” por causa das obras mais ambiciosas, ora de “Schubert de saias” por causa das canções.
A discriminação masculina é multissecular. Isso acontece desde o século 16. Só mudaram as nuances, mas o preconceito permanece. Maddalena Casulana, a primeira mulher que publicou sua própria música em Veneza em 1568, desafiou o crasso erro dos homens que os fazia pensar que só eles possuíam estes elevados dons intelectuais.
Quase 300 anos depois, em 1850, ao ouvir a música de Fanny Hensel, irmã do célebre compositor Félix Mendelssohn, os críticos de Berlim afirmaram ter certeza de que se tratava de uma mulher, pois sua música não tinha “uma ideia individual e poderosa”, “interioridade” nem o “vigoroso sentimento que nasce de uma convicção profunda”.
Uma empáfia repetida em pleno século 20, num famoso “blinfold test”, escuta às cegas de uma obra musical. Aconteceu em 1918, com a sonata para viola e piano de Rebecca Clarke (1886-1979). A história de sua sonata para viola e piano é prova provada deste preconceito inadmíssível. Clarke, inglesa que se transferiu para os Estados Unidos, conheceu em 1918 e se tornou amiga de Elizabeth Sprague Coolidge, uma das maiores mecenas da primeira metade do século 20.
Convidada pela amiga, Rebecca inscreveu-a na competição integrante do festival de música de câmara patrocinado por Elizabeth. As inscrições eram anônimas, ou seja, o júri não sabia o nome do compositor. Rebecca conta: “Escolhi um fragmento de um poema de Alfred de Musset como pseudônimo: ‘Poeta, pegue teu alaúde; o vinho da juventude/ fermenta esta noite nas veias de Deus’”.
Eram 73 candidatos. Os seis juízes declararam empatadas duas obras. E Madame Coolidge desempatou votando pela sonata de Ernst Bloch. O júri perguntou-lhe por que descartara a outra sonata, e ela mandou dizer que gostaria de ver as reações dos jurados ao saberem que era de uma compositora. No júri, soube-se depois, houve quem tivesse aventado, nas conversas internas dos jurados sobre as obras, a hipótese de o verdadeiro autor da sonata ser simplesmente Maurice Ravel.
Pegou mal para os engravatados membros do júri. Anna Beer, historiadora inglesa de 59 anos, escreveu em 2016 um livro esclarecedor sobre as mulheres na música, intitulado Harmonias e suaves cantos – as mulheres esquecidas da música clássica (disponível em inglês e em espanhol).
Ela diz que não adianta reescrever a história da música apenas “acrescentando as mulheres”. É fato. Segundo Beer, “que trabalharam invariavelmente em uma cultura musical dominada por homens, enfrentaram repetidos ataques”. E ainda por cima só escreveram a música que lhes era permitido compor, ou seja, primeiro música sacra, em seguida peças para piano e lieder [canções para voz e piano]. Gêneros menores, segundo as histórias oficiais.
O melhor do livro de Anna Beer é que ela não cai na polarização contrária, a de que praticamente todas as compositoras foram geniais. Do século 16 ao século 20, muitas compositoras como Francesca Caccini, Barbara Strozzi, Élisabeth Jacquet de la Guerre, Marianna Martínes, Fanny Hensel, Clara Schumann, Lili Boulanger e Elizabeth Maconchy “foram silenciadas pelas circunstâncias, pela doença ou pelos preconceitos sobre as mulheres e a música vigentes em sua sociedade, em sua família, ou – o que é ainda mais doloroso – em seu foro íntimo”.
Faz falta um livro que conte a história das compositoras brasileiras desde meados do século 19 até os dias atuais. É uma narrativa cheia de injustiças, recalques quando não hostilidade aberta. Um único exemplo odioso. O centenário de nascimento da pianista, regente e compositora brasileira Eunice Katunda deveria ter sido amplamente comemorado em 2015. Passou em branco.
Nascida no Rio de Janeiro, estava no pelotão de frente da vanguarda comandada por Hans Joachim Koellreutter no final dos anos 1930 e na década de 1940, ao lado de Guerra-Peixe e outros. Mas Eunice rompeu com a vanguarda, entrou para o Partido Comunista, fez militância política em Salvador.
Também esteve na Europa, foi aluna dileta do maestro Hermann Scherchen e próxima do compositor italiano Bruno Maderna, entre outros. Quando retornou ao Brasil, teve sua entrada barrada no Teatro Municipal de São Paulo por motivos poíticos. Morreu em 1990 um tanto esquecida.
Que tal começarmos a reescrever a história da música brasileira incorporando o trabalho de alta qualidade das compositoras como Chiquinha Gonzaga até as atuais, como Marisa Rezende, Kilza Setti, Jocy de Oliveira e os jovens talentos como Tatiana Catanzaro?
Ouça composições de mulheres da música erudita
Compositoras estrangeiras
- Fanny Hensel-Mendelssohn (1805-1847): Abertura em Dó – Royal Northern Sinfonia:
- Clara Schumann (1819-1896): Concerto para piano e orquestra em lá menor, Op. 7. Lauma Skride (piano) e Orquestra do Gewandhaus, regência de Andris Nelsons
- Emilie Mayer (1812-1883): Concerto para piano e orquestra em si bemol maior, com Heghie Rapyan (piano) e a Orquestra de Mulheres Austríaca [FSOA - Female Symphonirr Ocehstra Austria], regida por Silvia Spinnato:
Compositoras brasileiras
- Chiquinha Gonzaga (1847-1935): A pianista Karin Fernandes acaba de gravar, em primeiro registro mundial, o primeiro volume da integral das valsas de Chiquinha Gonzaga: Valsa da opereta pastoral “Estrela d’Alva”
- “Borboleta” (valsa):
- Eunice Katunda (1915-1990): “Sonata de Louvação”, Joana Cunha de Holanda (piano)
- “Vozes Mulheres”, Adélia Issa (soprano), Rosana Civile (piano): CD integral com 15 canções, começando com esta “Moda de Corajoso”, música de Eunice Katunda, versos de Mário de Andrade:
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