A pandemia zerou o placar da cena musical brasileira. É um universo multifacetado, que assume realidades distintas país afora. Mas a todo projeto foi dada a mesma condição em uma nova e desconhecida partida: estar fora do palco, buscando manter-se ativo. Cada um reagiu como deu. Mas saiu-se melhor quem entendeu o momento – e os recursos oferecidos pela internet – como espaço para inovar e repensar seu papel.
Dias depois da paralisação, concertos gravados começaram a surgir na rede. Foi uma resposta rápida. E que levou a audiência da música clássica de milhares para milhões. Mas é difícil comparar o engajamento da pessoa que sai de casa para ir a uma sala de concertos com o daquela que, por instantes, assiste a um trecho de apresentação no Facebook. E isso levou à percepção de que, no mundo virtual, mais do que quantidade, é preciso qualidade – ou um sentido específico no contato com o público.
Diversos projetos entenderam a mensagem. A Filarmônica de Minas Gerais, por exemplo, além da transmissão de concertos ao vivo, aproveitou a pandemia para tirar do papel um projeto antigo, uma academia, com os músicos dando aulas remotas a estudantes de diferentes projetos musicais do país. A Escola de Música do Estado de São Paulo também produziu conteúdo para o público em geral, com mais de 900 vídeos. O Teatro São Pedro inseriu o público no processo de criação de uma ópera, O Mundo da Lua, de Haydn, desde a primeira reunião do elenco até a montagem final. O Teatro Municipal de São Paulo produziu documentários sobre as óperas que seriam encenadas.
A Orquestra Sinfônica de Santo André abriu o ano pandêmico com as Microestreias da Quarentena, encomenda de oito obras a compositores brasileiros: eles sabiam que as peças seriam gravadas remotamente, fazendo do distanciamento parte do processo criativo. O grupo criou também o documentário Trilogia Trancafiada, sobre a rotina dos músicos e a presença da música na vida das pessoas durante o isolamento social.
São ações que mostram atenção ao momento vivido e à capacidade da arte de com ele lidar. De diferentes formas. O Instituto Baccarelli, além de investir na educação infantil à distância, levando música para a casa das famílias de seus alunos em um momento difícil, dedicou esforços para arrecadar alimentos para a comunidade, entendendo que sua função primeira é ajudar os moradores de Heliópolis. Na Bahia, o Neojiba também uniu o ensino à distância com ações comunitárias – em uma delas, seus músicos foram convidados a tocar e cantar de suas janelas para seus vizinhos, em diferentes cidades do estado.
A Sala Cecília Meireles realizou o ciclo das 32 sonatas para piano de Beethoven com transmissão ao vivo – e usou os recitais para arrecadar verbas para o Sindicato dos Artistas e Técnicos do Rio de Janeiro, consciente de que o fechamento impactou não apenas sua programação, mas toda uma cadeia produtiva que necessitava de ajuda. O Festival de Música do Espírito Santo reinventou-se com uma programação na qual, a partir da pandemia, discutiu conceitos como a relação entre centro e periferia, dando também o mesmo espaço para compositores e compositoras. Em Tiradentes, o Festival Artes Vertentes fez da Água o seu tema em um momento em que o difícil acesso a ela para parte da população era discutido.
Retorno. Com o passar do ano, orquestras Brasil afora foram retornando aos palcos – foi, por exemplo, o caso da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, que voltou a se apresentar em agosto e, em outubro, a receber o público, com exemplar protocolo de segurança sanitária.
Música se faz ao vivo, e retomar as apresentações é o desejo de todos. No caso da Osesp, no entanto, o foco em manter a programação como havia sido prevista fez com que o grupo não procurasse realizar, na internet, projetos artísticos inovadores – o que seria natural uma vez que o retorno ainda é gradual.
Para 2021, persiste a mesma fórmula. A temporada foi mantida como prevista, na expectativa, hoje distante, de que até março a pandemia esteja superada. E a sugestão feita pelo diretor artístico Arthur Nestrovski de que uma maneira de não mexer na programação seria antecipar a vacinação dos músicos soa estranha em um país onde até agora ninguém sabe quando e como será realizada a vacinação.
A Osesp precisou naturalmente cancelar o Festival de Inverno de Campos do Jordão. Aqui também não criou alternativas digitais. Em seu lugar, anunciou duas edições para 2021. Uma em janeiro, já cancelada, e outra para junho, julho e agosto, definida como “a maior da história”, ainda que os números de bolsistas e concertos previstos sejam próximos de edições anteriores.
Contraponto foi o Festival Internacional de Música em Casa, organizado a partir dos esforços do músico Flávio Gabriel, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centenas de professores e milhares de alunos se reuniram virtualmente para aulas que, se não substituem o contato presencial, ficaram como símbolo da possibilidade de união do meio musical em torno da ideia de resistência.
Ideias foram importantes em 2020. Em vídeos como Inumeráveis, a Orquestra de Câmara da USP discutiu, com música, a banalização da morte. A Fundação Clovis Salgado realizou seminário sobre o mercado da ópera – com destaque para debates a respeito de maior espaço para mulheres e negros no setor. Esses temas também estiveram presentes nas discussões promovidas pela Orquestra Sinfônica da USP. Nessa esteira, e de debates realizados pelo recém-criado Fórum Brasileiro de Ópera, Dança e Música Clássica, nasceu o Festival Ubuntu, propondo ações para se lidar com o preconceito na área musical.
No saldo geral, ficou a sensação de que o universo da música clássica brasileira soube responder aos desafios colocados pela pandemia. Não é pouca coisa. Mas ficou claro também que o novo público trazido pela internet merece atenção. É preciso pensar em formas originais de dialogar com ele. E trazê-lo cada vez para mais perto. Pela internet, claro. Mas também, quando possível, para o teatro.
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