Nando Reis está de volta às canções inéditas, depois de oito anos. E são muitas. O álbum quádruplo Uma Estrela Misteriosa Revelará o Segredo traz 30 canções, 26 delas jamais gravadas anteriormente. Um projeto ousado. Nando o lançou em quatro etapas nas plataformas digitais. Quem optou por comprar a edição física, recebeu um caprichado box completo, de uma vez só. A balada Azul Febril já é candidata a hit.
Artista independente, como gosta de frisar, Nando, com mais de 40 anos de carreira desde que estreou no grupo Titãs, apresenta no sábado, 12, a turnê Uma Estrela Misteriosa pela primeira vez para São Paulo, no Espaço Unimed. Com ele no palco, dois músicos fundamentais nesse projeto, o baterista americano Barrett Martin, com quem já havia trabalhado anteriormente, produtor do álbum, e o guitarrista Peter Buck, cofundador da banda R.E.M. Completam a banda os músicos Walter Villaça (guitarra), Alex Veley (teclado) e Felipe Cambraia (baixo) e Sebastião Reis (violão), filho de Nando.
Para entender Uma Estrela Misteriosa Revelará o Segredo é preciso pegar a canção A Tulha. E estender ainda para o livro recém-lançado Pré-Sal (WMF Martins Fontes). Ambos relevam como o processo de criação funciona na mente de Nando.
A música, autobiográfica, um rock em tom épico, fala em aflições e reflete a velocidade de pensamento do compositor. O livro revela como as imagens que se formam em seu cérebro, e que Nando costuma materializá-las em formato de desenhos e colagens, podem dar a partida para uma nova composição, como foi o caso de Pré-Sal, que dá título ao livro, lançada no passado, em 2015.
“Meu pensamento melódico está relacionado com a rítmica do meu próprio pensamento, a como as ideias se organizam na minha cabeça, a como me movimento”, diz Nando ao Estadão, em entrevista concedida em sua casa no bairro do Itaim Bibi, em São Paulo.
A mente inquieta de Nando, junto a sua equipe, pensou em toda a estratégia de lançamento do álbum, incluindo a divulgação e a turnê (serão quase 30 shows até dezembro). “Não fico sentado em casa esperando as coisas acontecerem”, diz Nando, aos 61 anos, cheio de vigor. Resultado, segundo ele, de uma vida longe da drogas e do álcool. “Estou há oito anos sóbrio e pretendo ficar o resto dos muitos anos que ainda vou viver. Quero viver bem!”, diz.
Você já contou que, a princípio, se reuniu com o Barrett Martin para fazer duas ou três gravações. Como o projeto evoluiu para virar, então, um disco quádruplo, com um conceito tão bem amarrado?
Há vários eventos que desaguaram nesse álbum. A começar pelo fato de que eu não lançava um disco com músicas inéditas desde 2016. Era um intervalo que já estava me incomodando. Um disco, quando você entra em estúdio, é apenas um desejo. Aproveitei a presença do Barrett e do Peter Buck, que não é comum nem barata, para gravar o máximo possível. Só não esperava que o resultado fosse tão satisfatório a ponto de, entre o primeiro e o segundo período de gravações, eu compor mais. Resgatei também algumas coisas mais antigas, ideias esparsas que eu concluí no estúdio. O disco, então, foi se desenhando de forma inesperada. Demorei para lançá-lo por conta da turnê com os Titãs. Até me preocupei se ele ficaria ultrapassado. Mas, não, pelo contrário. Ele se mantém muito bom.
É ir contra o mercado atual lançar 30 músicas quase simultaneamente, não?
É muito comum relacionar a produção musical com a forma como ela é consumida. Isso é tolo. Para mim, não é determinante. Quando eu produzo, componho, me atenho a um binômio que é elementar: criar e publicar. Obviamente, tenho que considerar o mundo no qual eu vivo e me relacionar com ele. Mas isso não determina a forma. Não penso: vou fazer música de três minutos, vou fazer música para o TikTok. Não! A obra de arte não pode supor sua perenidade a partir desses elementos tão transitórios. A obra de arte se sustenta por meio do pensamento e da sua manifestação formal que, no meu caso, é a composição e sua resolução sonora que vai ser percebida e admirada - ou não, pois isso foge ao meu controle.
E o que o público quer?
Eu nasci comprando fitas cassetes e indo a shows. De certa maneira, nada mudou. As músicas são compostas, as pessoas as ouvem no rádio, na televisão, na internet, e, se gostarem, vão ao show. No fim das contas, elas querem uma melodia para assobiar. E só sei fazer isso. E é isso que eu gosto de fazer. E posso fazer. Tenho uma carreira consolidada, um público que se renova, que me permite sobreviver. Sou um artista independente. Tenho o controle de decisão sobre aquilo que eu queira ou venha a fazer.
Isso significa fazer música para consumo?
Eu faço música para consumo. Quando eu a publico, espero que ela seja consumida. E eu dependo desse consumo. Eu preciso ser remunerado. E o que se paga no streaming é uma vergonha, ultrajante. Eu me mantenho, desde sempre, com meu parâmetro crítico, que garante a qualidade do meu trabalho. O que justifica eu publicar uma música é que ela me agrade. Preciso me interessar pelo o que faço. Acreditar. Essa crença advém de uma fidelidade que tenho comigo. Me interesso, olho para o entorno, mas não me envolvo a ponto de absorver essas transformações. Não quer dizer que eu seja melhor. Eu sou assim.
Esse álbum não tem feats, por exemplo, uma tendência do mercado atualmente...
Fiz muitos feats durante a pandemia, na ideia do que era o Nando Hits (álbum de 2023), no meu interesse em me relacionar com outros artistas, independentemente de geração. Tenho um pensamento que também é estratégico, mas com a ideia de que só irei fazer com quem me identifico, com quem irá produzir um resultado musical que não seja tão artificial. Não quero nada de artificial. Quero distância, inclusive, da inteligência artificial, do ponto de vista da produção. Ela me é estranha. Tem elementos que, digamos, afetam aquilo que julgo ser o mais importante, o pensamento humano. Não posso ser um pastiche de mim mesmo. Não creio que algoritmos me substituam.
Você se refere à possibilidade da IA criar músicas?
É. Uma pessoa vai pegar...Eu nem sei como essa porcaria funciona. Mas, sei lá, ouve-se toda a minha produção e compreende-se os intervalos da minha melodia, das palavras que uso, e faz-se um simulacro da minha produção. Como um profissional afetado desde o começo da era digital pela falta de regulação e legislação, sob o ponto de vista dos direitos autorias, acho insano que haja mais interesse na produção do que no controle do quanto esse método pode afetar as pessoas que dependem da música. Eu trabalho e sou mal remunerado. Eu e todos os artistas. E, mais, toda a cadeia. Porque se o artista é mal remunerado, ele paga mal a músicos e técnicos. Não sou um commodity. E, se fosse, deveria valer mais.
Você falou sobre melodia, sobre criá-las para as pessoas assobiá-las. Como você se relaciona com ela?
Ah, é o que me encanta, o que busco. Creio que é algo que faço direito - só nunca vou dizer que sou o melhor, porque não colocaria dessa forma. No meu trabalho, ela está presente na relação com a letra. Meu pensamento melódico está relacionado com a rítmica do meu próprio pensamento, a como as ideias se organizam na minha cabeça, a como me movimento. Tudo é uma coisa só. Então, de novo, a inteligência artificial pode até achar que vai fazer uma música semelhante a que faço, mas nunca vai saber andar como eu ando. A música que eu faço precisa da forma como eu me levanto, caminho, escovo os dentes... Isso tudo é a fonte da minha produção.
E diferente a cada dia...
Em cada um de nós.
E sobre a melodia na música atual?
Eu evito um pouco me manifestar. Primeiro, porque parece algo de avaliação. Nunca pensei assim. Acho tudo bom. Não cabe a mim dizer o que é bom ou ruim. Não me interessa dizer qual é o meu gosto. Serei mal interpretado, é até antiético. Há músicas que me sensibilizam mais, que são mais afeitas ao meu gosto. Vejo com bons olhos e felicidade que haja grande produção, público para todo mundo. É estimulante. É uma forma de nos mantermos vivos. Temos que combater a oposição e hostilidade - o que ficou muito evidente no governo anterior - à classe artística, à importância do pensamento original, à diversidade e à variedade. Há uma coisa horrível na onda conservadora que é estabelecer um padrão. Cercear a variedade, acusando-a com moralismo.
Estou desgastado e cansado dessa poluição de hostilidades e contraposições. É inócuo. Quero distância dessa violência.
E, se você criticar algo, acredita que estará colaborando com esse tipo de hostilidade, é isso?
As minhas afirmações estão presentes no meu trabalho. Claro, falo, me posiciono. Mas, nesse aspecto, não. É preciso tomar cuidado atualmente. Tudo são faíscas, pequenos recortes. Estou desgastado e cansado dessa poluição de hostilidades e contraposições. É inócuo. Quero distância dessa violência. Estou de saco cheio de haters. O que quero é espaço para todo mundo. E, novamente, quero que todo mundo seja remunerado de forma justa, que o compositor não seja massacrado pelos algoritmos. E combater esse monopólio das big techs, essa estupidez que está pautada no ‘pode tudo’, de que não há legislação. Isso é uma bazófia, falácia. Um sistema de manutenção de monopólio. Está na raiz de toda a falta de justiça social, de distribuição de renda e do capitalismo.
Você, como disse, é um artista independente. Por que buscou esse caminho? Ou, o que o mercado queria do Nando que ele não quis fazer?
Foi por acaso. E por sorte. E vida é composta da sua reação, do que você faz diante aquilo que lhe é oferecido. Quando comecei, já havia artistas independentes. Havia até uma indisposição por parte dos artistas independentes da cena paulista. Eles achavam que nós, as bandas que foram contratadas pelas gravadoras, éramos vendidos ao mercado. Esses preconceitos, ideias rasteiras. Quando venceu meu contrato na Universal, em 2011, não quiseram renovar. Fui conversar com o presidente da gravadora e ele me disse que eu não vendia discos. Eu disse a ele: “Fui contratado para fazer música. Quem deveria vender discos é você. Você que deveria ser demitido”. Fiquei puto. Já era na época das crises das gravadoras e elas começaram a querer ganhar participação nos cachês dos shows. Não concordei. Entendi que poderia explorar o mercado sozinho. Depois de romper com meu empresário, montei meu próprio escritório. Estou muito satisfeito.
‘Azul Febril’, uma das músicas desse álbum, é uma das mais tocadas no segmento de MPB. Uma vitória para um artista independente, não?
É um disco com 30 músicas, algumas com seis, oito minutos. Provavelmente não tocarão no rádio. Mas eu trabalho por ele. Jogo o jogo. Vou visitar o Spotify, monto playlists, defino estratégias, retomei meus vídeos para o YouTube. Meu trabalho é permanente. Tenho disposição para isso. Sou ambicioso. Tenho família e equipe grandes. Não fico sentado em casa esperando as coisas acontecerem.
A canção ‘A Tulha’ e o livro ‘Pré-Sal’ mostram como sua mente funciona. Uma mente inquieta e ansiosa. Parece que vem de longe, da infância, como indica a letra da música. Como você equilibrou esses dois movimentos ao longo do tempo?
A Tulha é uma música totalmente autobiográfica. Sim, tenho uma mente inquieta. Sou uma pessoa normal, com angústias e aflições. Lido com as inquietações existenciais dentro das minha características. Sempre em busca de um equilíbrio. Ele é a chave da nossa existência, do instinto de vida e de morte, o que se faz com seus desejos, o que você renuncia ou atende. Lido com o público e com uma quantidade grande de pessoas e, ao mesmo tempo, tenho que lidar com a minha vida pessoal. Sou um sujeito cheio de dualidades. Já recorri a inúmeros artifícios que em determinados momentos pareceram funcionar. Álcool e drogas. E, depois, eles pararam de funcionar e passaram a me causar problemas. Estou sempre em busca de algo. Tenho 61 anos, e não mais 20. Há as circunstâncias de cada etapa da vida. É preciso se adaptar à elas. Para que eu possa viver essa vida agitada que tenho, preciso ter o contraponto de me exercitar, ter condicionamento físico, fazer psicanálise, tomar meus..., tomar meu própolis (risos). Sou organizado, sonhador e idealista. Muito emotivo, mas posso ser muito pragmático também.
Estou há oito anos sóbrio e pretendo ficar o resto dos muitos anos que ainda vou viver. Quero viver bem!
Parar com o álcool e com as drogas ajudou você a organizar tudo isso na sua mente?
Sim, muito. Estou há oito anos sóbrio e pretendo ficar o resto dos muitos anos que ainda vou viver. Quero viver bem! Quando você tem uma questão como a que tive, de dependência e adicção - quer dizer, tenho, porque é permanentemente -, muitas vezes você não percebe a dimensão que aquilo tem e refuta os alertas externos. Tanto que, em geral, as pessoas que têm a doença que tenho só conseguem tomar a decisão de parar quando se encontram em um estado de precariedade, de muito dor. Foi o meu caso. É muito triste. Sou membro da AA (Alcóolicos Anônimos), sei a barra que é. Tenho pessoas queridas que sofreram, que morreram, e não quero mal a ninguém. Agradeço imensamente à minha família por todo o apoio (Nando se emociona).
É seu primeiro disco totalmente sóbrio. Algo forte, não?
É uma frase forte que faço questão (de dizer). Por ter a consciência da doença, do estigma, do preconceito e da falta de informação, me disponho a tratar sobre o tema. A solidariedade é uma lição de quem é do AA.
Toda sua produção se tornará um legado. Recentemente, (o diretor de cinema) Woody Allen afirmou em uma entrevista que legado é mera fantasia. Concorda com ele?
Discordo um pouco dele. Eu me importo. Não que eu queira ter controle, mas tenho direitos autorais, filhos e família. Não sou nada imediatista. Essa preocupação não se restringe à produção artística. Moro nesta casa há mais de 40 anos. Plantei 30 árvores nela. Assisti a este bairro ser destruído. Me indispus e fui processado pelo dono da construtora que comprou o terreno vizinho. Ele derrubou 40 árvores em uma manhã. Fiz um vídeo o chamando de criminoso ambiental. E aí, vem os candidatos a prefeito dizer que vão plantar árvores. O que vai resolver? Vão demorar 30 anos para crescer. Parem é de derrubar árvores! O ar de São Paulo está podre! Tenho uma pequena área de terra no interior de São Paulo na qual faço recuperação da mata ciliar, tenho uma agrofloresta e cultivo abelhas nativas. Esse é meu legado. Tenho um senso de retribuição para com a vida. Não sou melhor do que ninguém. Só parece que sou melhor porque todo mundo acha isso uma bobagem, e não fazem. Deveria ser uma responsabilidade de todo indivíduo.
Aliás, sua turnê tem uma preocupação com o meio ambiente no que diz respeito a produção de resíduos, entre outros aspectos.
Sim, tenho um consultor para que possamos compreender, dentro da nossa atividade, o que é possível fazer, até em termos de educação da minha equipe, das pessoas envolvidas no show, na plateia. Essa questão é quase de sobrevivência. Estamos em muito atrasado. O descaso com o meio ambiente é uma barbaridade.
Há uma previsão recente do (climatologista) Carlos Nobre de que o Pantanal acaba em 2070 e que a Amazônia será duramente devastada...
O Nobre nos alerta há tempos. Tudo é decepcionante. No governo Bolsonaro o negacionismo ficou tão evidente. Também é frustrante a inação do governo atual, o Congresso que é o emblema do atraso da classe política brasileira e da representação do pensamento vigente. Para mim, o maior contrassenso é que a mudança climática afetará o todos - e já está nos afetando - e incidirá de maneira trágica e comprometedora na agricultura. O agronegócio é muito responsável por essa destruição. Um pensamento imediatista de lucro. Eles não conseguem pensar daqui a 10 anos. A destruição dos biomas impacta no regime de chuvas e das secas, e a agricultura depende disso. Não consigo compreender. É muita estupidez.
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Nando Reis - Um Estrela Misteriosa
- 12/10, 22h
- Espaço Unimed (Rua Tagipuru, 795, Barra Funda. SP)
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Pré-Sal
- Autor: Nando Reis
- Editora WMF Martins Fontes (120 páginas; R$ 99,90)
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