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‘No Tempo da Intolerância’, álbum póstumo de Elza Soares, é testamento artístico da cantora

Disco chega às plataformas digitais nesta sexta-feira com oito composições da artista e inéditas de Rita Lee e Pitty

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Foto do author Danilo Casaletti
Atualização:

Em seus últimos anos de vida, Elza Soares (1930-2022), com mobilidade reduzida, costumava ficar horas olhando para a praia de Copacabana, de dentro do apartamento onde morava, à beira mar.

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“A gente não precisa andar para caminhar por aí”, dizia. Elza, cantora do milênio, chamada de sambista a vida toda, ressignificou sua carreira, a partir da segunda década dos anos 2000, quando caminhou por assuntos que estavam na pauta da nova geração: racismo, violência contra a mulher e desigualdade social. São dessa fase os álbuns A Mulher do Fim do Mundo (2015), Deus É Mulher (2018) e Planeta Fome (2019).

O que não era possível prever é que o melhor da Elza do século 21 estaria guardado para o álbum No Tempo da Intolerância (Deckdisc), que chega às plataformas digitais nesta sexta-feira, 23 de junho, um ano e meio após da morte da cantora, no dia em que ela completaria 93 anos.

Gravado em 2021, o álbum traz dez canções inéditas - oito delas levam a assinatura Elza. É carioca, black music e suingado, características que marcaram a trajetória da cantora. Nas letras, testemunhos do que viu e viveu.

A cantora Elza Soares em foto de divulgação do álbum 'No Tempo da Intolerância' Foto: Daryan Dorneles

Quando Elza pode falar para Elza, as bandeiras que ela empunhou mais ostensivamente nos últimos anos ganharam ainda mais legitimidade. A sonoridade, novamente deslocada do peso do toque paulista dos últimos trabalhos para o universo carioca, é como uma nova revolução da cantora. Parece tudo novo de novo.

O samba soul que dá nome ao álbum, assinada por Elza em parceria com Pedro Loureiro, Jefferson Junior e Umberto Tavares, diz: ‘Mas eu apanho de todos os lados/Eles dizem que eu sou polêmica/ Como dizia Luther King/ Se você quer um inimigo/ É só falar o que pensa’.

Conectada com essa, está a simbolicamente intitulada de Coragem, também assinada pelo quarteto. Nela, Elza anuncia: ‘Se quem cala consente /A minha boca vai continuar/ Sendo uma arma letal’. A cantora, desde quando andava pelas ruas de no bairro Água Santa, no subúrbio carioca, cantarolando com sua voz rouca, sabia que sua batalha se daria pelo o que sairia de sua boca.

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Em Pra Ver Se Melhora, uma letra, criada a partir de uma lista de compras de Elza (leia mais abaixo) pede por justiça e pelo fim da fome.

O surpreendente bolero Te Quiero - e há quantos anos Elza não gravava um - foi feito a partir de uma carta de amor escrita pela cantora para um namorado - um grande momento vocal da cantora no disco. Elza nunca enviou os versos para o remetente.

Eis-me aqui rainha africana/Brazuca sul-americana/Poderosa no meu trono

Letra que Rita Lee escreveu para Elza

Produzido por Rafael Ramos, com direção artística de Pedro Loureiro, No Tempo da Intolerância ainda traz Elza lida por Rita Lee, em uma de suas últimas composições. Para a cantora, Rita escreveu e Roberto de Carvalho musicou Rainha Africana. “Eis-me aqui rainha africana/Brazuca sul-americana/Poderosa no meu trono”, diz a letra que Rita Lee afirmou ter “baixado” em 10 minutos.

Outra roqueira, Pitty, enviou Femielza. A também baiana Josyara assina com Elza a faixa Mulher Pra Mulher (A Voz Triunfal), um incômodo papo entre uma mulher preta e uma branca.

Encontrada por Ramos, uma melodia inédita de Dona Ivone Lara (1921-2018) ganhou letra de Elza e Loureiro e se transformou no samba No Compasso da Vida. Nele, estão as tais viagens que Elza fazia sem sair de seu apartamento de Copacabana.

No caderno perdido, frases que deram origem às músicas

A capa do álbum 'No Tempo da Intolerância' Foto: Deckdisc

Quando Pedro Loureiro, diretor artístico de No Tempo da Intolerância, começou a trabalhar com Elza Soares, por volta de 2015, tomou conhecimento de um caderno no qual a cantora anotava listas de compras, tarefas de inglês, pensamentos e letras de música.

Elza dizia a Loureiro que gestava há tempos um disco carioca, forte, black music e que falasse de seu povo preto. Esse disco, ou o conceito dele, estava nesse caderno. Porém, havia um detalhe: o caderno, no qual Elza começou a escrever nos anos 1980, estava perdido havia tempos.

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Em 2018, em uma mudança de apartamento, o objeto apareceu. Começou aí uma quebra cabeça para montar as letras que dariam forma ao álbum. Para ajudar na tarefa, os compositores Jefferson Junior e Umberto Tavares, ligados à cena funk carioca e autores de hits de Anitta, foram convocados. Foram necessários ajustes em letras, métricas e rimas para que as canções ganhassem sentido.

No Tempo da Intolerância começou a ser feito assim que o álbum Planeta Fome, de 2019, ficou pronto. Elza, segundo Loureiro, tinha urgência em fazer o novo, que, segundo ela repetia, vinha sendo gestado havia três décadas.

“É um disco produzido e montado por Elza, como ela desejou”, diz Loureiro. “Não é um junta aqui, junta ali póstumo”, completa, em papo com o Estadão.

Elza colocou as vozes nas composições em 2021. A última foi a de Rita Lee (leia mais abaixo). O plano era, de fato, lançá-lo neste ano. Quis o destino que sem a presença de Elza.

Se quem cala consente /A minha boca vai continuar/ Sendo uma arma letal

Trecho da canção 'Coragem'

Nas últimas semanas de vida, Loureiro notou que Elza estava mais emotiva, o que, segundo ele, não era muito normal. Era mulher forte, fazia questão de não deixar a peteca cair.

Elza escutou No Tempo da Intolerância ainda sem a produção final. A Loureiro, emocionada, falou. “Acertei na veia nesse, cara!”.

Loureiro conta que Elza tem outros “guardados”. São gravações que ficaram de fora de projetos. Se depender dele, essas músicas continuarão gravadas. “Se ela não quis lançar na época, não faz sentido lançar agora. O disco que ela queria é o No Tempo da Intolerância”.

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‘Rainha Africana’ foi uma das últimas composições de Rita Lee

Quando selecionava o repertório para o álbum No Tempo de Intolerância, Elza Soares pediu que sua equipe entrasse em contato com compositoras para, quem se sentisse à vontade, enviasse músicas para ela gravar. Uma das que estava nessa lista, só de mulheres, como pediu a cantora, era Rita Lee.

Rita entendeu o chamado de Elza. Mesmo compondo menos do que o habitual, entregou a letra e a melodia de Rainha Africana, feita sob medida para Elza.

No livro Outra Autobiografia (Globo Livros), lançado após sua morte, Rita narra como fez a canção, em um momento desafiador de sua vida:

“Pouco antes de eu ser diagnosticada com câncer, ela me pediu uma música para gravar. A letra baixou em dez minutos. Pensei em sua figura majestosa e nasceu Rainha Africana. Rob (o músico Roberto de Carvalho) fez a música, fomos ao estúdio na garagem, gravamos uma demo e mandamos para ela. Tudo no mesmo dia. Lembro que tive que me esforçar mais para cantar; coisas do tumor que já estava ali”, narra Rita em seu livro. A roqueira ainda conta que Elza foi uma das primeiras pessoas a prestar solidariedade quando ela anunciou que estava com câncer de pulmão.

Recentemente, o perfil oficial de Elza Soares no Instagram publicou a troca de mensagens entre Rita e Elza, na época em que elas se comunicaram para falar sobre a canção.

‘Elza, minha deusa! Aqui é Rita Lee, sua súdita. É que meu santo baixou e escreveu uma letra pra louvar você. E Roberto musicou. Beijos eternos!’

Elza respondeu:

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‘Ô Rita, muito obrigada!, Te adoro também, criatura”. Em outro trecho, ela diz: “Rita, meu amor, mulher forte. Vambora, mulher’.

Ao Estadão, Pedro Loureiro contou o que Elza dizia sobre a composição de Rita: “Ela leu minha alma”, repetia a cantora aos amigos mais próximos. Elza chorou de soluçar quando ouviu a canção pela primeira vez.

Elza nunca havia gravado uma música de Rita em toda sua carreira. Rainha Africana foi uma das últimas letras que Rita escreveu. Pouco tempo depois de entregar a encomenda de Elza, Rita escreveu o rock Caos, lançado pelo grupo Titãs em julho de 2022. A música é assinada em parceria com Roberto e Beto Lee, filho mais velho de Rita.

No Tempo da Intolerância

Elza Soares

Deckdisc

Plataformas digitais (em vinil, no segundo semestre)

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