Nossa escuta musical está anestesiada. Ou melhor, dopada. Como sonâmbulos, seguimos as sugestões dos algoritmos e nos entupimos de mais do mesmo. Empilhamos mecanicamente playlists e favoritos aos quais provavelmente retornaremos mil-e-uma-vezes.
Mas não se desespere. Ouve-se música no piloto automático desde os tempos de Beethoven, no início do século 19. Sua revolucionária Sinfonia Eroica, por exemplo, estreou numa noitada particular no palácio do príncipe Lobkowitz, em Viena em 9 de junho de 1804. Ouvir música nova custava caro. Ele pagara pela exclusividade de ouvi-la por certo tempo. Só em abril do ano seguinte ela estreou em concerto público em Viena. Os músicos ainda se ajeitavam no salão principal quando o nobre perguntou a Beethoven:
- O que vai nos oferecer hoje? Será que acharemos original?
- Original do começo ao final (...) Encontrei um novo caminho.
Ao final, Beethoven ouviu, cercado por uma roda de nobres:
- Não é uma sinfonia como conhecemos
Ele respondeu:
- Você é quem decide o que é arte?
Lobkowitz ponderou: Ela é difícil.
Aí vem a frase tantas vezes citada de Beethoven: “É o maior elogio que se pode fazer a um artista. Porque difícil quer dizer bom, difícil quer dizer belo, difícil é o que se aproxima da verdade”.
Recorri a esta estorinha verídica porque, na verdade, a melhor música é aquela capaz de apresentar novidade e soar inédita aos nossos ouvidos, e ainda assim soar “bela”, na expressão de Beethoven.

O Spotify diz que pagou zilhões de dólares aos músicos em 2024. Esqueceu de clarear que 90% foi para poucos bolsos. É, como diz Caetano, “a força da grana que ergue e destrói coisas belas”.
Por isso, devidamente monetizados, 99 em cada 100 músicos solistas, grupos camerísticos e orquestras buscam diversificar ao máximo cada playlist. Aliás, não é justo chamá-las de álbum: álbuns, hoje fósseis, tinham conceito, queriam criar mais do que amontoados de músicas sem relação umas com as outras, proporcionando uma escuta orgânica infelizmente exterminada da vida musical do planeta.
Há, entretanto, um comportamento ainda possível neste infinito oceano de sons: garimpar álbuns que insistem em aliar talento musical à inteligência e estão à altura do que a palavra denota. Com música como a Sinfonia Eroica, que, mesmo financiada por um nobre que a manteve longe dos ouvidos públicos por mais de um ano, mudou o que se pensava fosse uma sinfonia.
Haydn, então apontado como o maior compositor vivo na Europa, estava naquela estreia. E foi direto ao ponto: “Muito longa. Muito cansativa. Ele criou algo que nenhum outro compositor tentou. Ele se colocou no centro da sua obra. Ele nos oferece um vislumbre de sua alma. Espero que seja por isso que é tão barulhenta. Mas isso é completamente novo – o artista como herói. Completamente novo, diferente do que existe hoje em dia”.
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A seguir, três álbuns que valem a viagem auditiva do começo ao fim. De artistas heróis, como dizia Haydn.
Terra Mater
- Com Malena Ernman (mezzo-soprano), l’Arpeggiata e Christina Pluhar (Erato, 2025)
Christina Pluhar, 60 anos, nascida na pequena cidade de Graz, na Áustria, toca um arquialaúde maravilhoso, do tamanho de um contrabaixo, e fundou 25 anos atrás o ensemble de música barroca L’Arpeggiata. Ela ampliou o conceito de liberdade criativa e improviso reinante na prática da música historicamente informada, assumindo cada vez mais um papel a cada projeto mais atrevido, mais convicto, no sentido de que intérpretes não foram feitos para só tentar reproduzir as notas no pentagrama. Vem sendo chamado de “conjunto experimental da música antiga”.
O álbum é mais do que uma ode à natureza, é um libelo contra a destruição do planeta que nós, humanos, estamos promovendo de maneiras cada vez mais avassaladoras. Nasceu quando o diretor do Festival Internacional Barroco na Abadia de Melk, na Áustria, juntou Christina e seu grupo à mezzo-soprano sueca Malena Ernman, 54 anos, que fez uma linda carreira até 2014. De lá pra cá, submergiu.
Conto já: ela é mãe de Greta Thunberg, a mundialmente conhecida ativista da luta contra as mudanças climáticas que vem impulsionando a luta contra o aquecimento global. No livro Nossa Casa Está em Chamas (BestSeller), Malena conta que de 2016 em diante, convencida por Greta a parar de viajar de avião para reduzir sua cota pessoal de carbono no planeta, só passou a aceitar apresentações em lugares que podem ser alcançados via ônibus ou trem. O livro, aliás, é assinado pela família toda, incluindo o marido e outra filha.
Em 1minuto e 14 segundos você se embriaga com Nachtigal, rouxinol, do compositor alemão Heinrich Ignaz Franz von Biber, que viveu entre 1644 e 1704. Aqui a bela voz de Malena é acompanhada apenas pelo violino de Margherita Pupulin. Uma viagem musical cheia de surpresas, até o grand finale: Nature Boy, hino hippie dos anos 1940, que explodiu nas paradas gravada em 1948 por Nat King Cole. Malena é acompanhada pelo cornetto de Doron Sherwin, o contrabaixo de Leonardo Teruggi e a percussão de David Mayoral.
‘Nachtigal’, segundo movimento da ‘Sonata Representativa’, de Biber
Nature Boy
Wild Flowers vol. 1
- Kurt Elling (voz) e Sullivan Fortner (Big Shoulders Records, 2025)
Duos de voz e piano são como saltos sem rede. O risco de desandar ronda o tempo todo. O gênero é antigo, a ponto de o maior compositor do gênero, que assinou mais de 600 canções (no século 19 chamavam-se “lieder”, formato essencialmente germânico) chamar-se Franz Schubert. Mas veio o século 19, a febre da opereta, das valsas e dos bailões ao ar livre em Viena, que atraíam multidões a ponto de a família Strauss montar franchise – havia várias orquestras com sua chancela comandando bailes Viena afora. E, já em pleno século 20, as operetas foram reinventadas nos musicais da Broadway – e dali para Hollywood.
Porém, o teste de qualidade continua sendo o formato voz e piano. Por isso, quando eles dão certo, é o nirvana. São raros os talentos que se encontram para criar livremente, cada qual com suas habilidades, e soarem profundamente integrados, como se fossem apenas uma sensibilidade aflorando em canções de uma força poética e musical impressionante. Detalhe: aqui a soma de 1 + 1 é muito mais do que 2. É a quintessência musical combinando o novo com certas afinidades que acolhem nossos ouvidos. Como Beethoven, lembram?
Tudo isso acontece no recém-lançado álbum Flores selvagens volume 1. Seis faixas, menos de 40 minutos de música da mais alta qualidade. De um lado, Kurt Elling, cantor de jazz nascido em Chicago 57 anos atrás.
Pretendia ser teólogo, mas, divertido, disse que “as noites de sábado ganharam a parada do domingo de manhã na igreja”. Afinadíssimo, timbre aveludado; parceiro ideal para o piano Sullivan Fortner, 38 anos, natural de New Orleans, um dos grandes nomes do piano improvisado atual.
Pela leveza de toque e aveludadas sonoridades, Fortner deve ser devoto de Debussy, cujas obras quando pianísticas muitas vezes nos fazem esquecer que o piano é, afinal, um instrumento de percussão.
Caso-limite: uma versão pra lá de moderna de Paper Doll, canção dos Mills Brothers de 1943, composição de Johnny Black. O piano não acompanha. Ele comenta, “conversa” com os desenhos melódicos da voz de Elling:
Elling e Fortner convidam Cecile McLorin Salvant, a mais completa cantora de jazz da atualidade em seus 35 anos para intepretarem A Wish (Valentine), um desejo... no dia dos namorados, música do pianista Fred Hersch, com letra de outra cantora incrível, a britânica norma Winstone.
P.S.: Não deixe de ouvir Kurt Elling num sofisticado “scat” no clássico ellingtoniano Things Ain’t What They Used to Be.
Short Stories Without Words
- André Mehmari (Estúdio Monteverdi, 2025)
Aos 47 anos, André Mehmari não é um só, mas muitos: pianista, compositor, trafega em todos os gêneros - para ele a música é uma só. E está cheio de razão nesta tese que transborda para suas criações musicais que vão da ópera ao trio de música instrumental, passando por concertos, música camerística, etc, etc.
O título completo de seu recém-lançado álbum de piano solo é Short Stories Without Words. Pequenas histórias sem palavras. Não por acaso, este título remete às famosas “canções sem palavras”, invenção de Félix Mendelssohn na primeira metade do século 19. Ele compôs 50 “lieder ohne worte” que perseguiam o ideal vocal do piano romântico. Como os noturnos de Chopin, que, com suas longas melodias nascidas de sua admiração pelas árias de Bellini, também buscavam esta vocalidade virtual. Numa carta de 1842, Félix escreve que afirma sua fé “numa música mais universalmente compreensível do que as palavras”. As peças curtas não têm sequer títulos, apenas indicações de andamentos.
Já Mehmari conta que gravou o álbum numa única sessão de gravação, “praticamente sem pausas entre cada take”. E a seguir acrescenta: “O fluxo de consciência musical gera uma narrativa de sons, texturas e ideias”. A ponto de, como confessa no encarte, eles serem colocados em ordem alfabética, sem edições ou cortes. Pensou e deu títulos a cada um deles “a posteriori”. Garante: “Não tiveram qualquer influência no ato da criação espontânea”.
Hão de dizer: Ah, mas ele deu títulos programáticos, como Rag Felliniano, Sonhos do Gato Ligeti, Lamentos do Jovem Gonzaga ou Picasso y Nazareth. Mas não esqueçam que ele só lhes atribuiu estes títulos depois que os gravou. Ora, em geral os compositores agem sob um impulso exterior. Uma forte emoção; um acontecimento trágico; uma grande vitória ou fracasso pessoal; e por aí afora. Neste caso raro não. O impulso inicial de André foi o próprio ato de improvisar. Ele parece ter se depurado de qualquer sentimento ou procedimento musical anterior.
Nesse sentido, não é exagero compará-lo aos recitais improvisados de Keith Jarrett. Pouca gente sabe, mas em 24 de janeiro de 1975, quando sentou-se ao piano, em Colônia, na Alemanha, em vez de improvisar sobre temas e canções conhecidas de todos, fez um improviso único, sem interrupções, sem nenhum tema reconhecível. Ele improvisava no calor da hora, sem nenhuma preconcepção. Jarrett inventava ali o recital de piano improvisado.
Exatamente como Mehmari faz neste álbum que permanecerá como um dos grandes momentos de sua carreira. Ele sentou-se ao piano de seu querido Estúdio Monteverdi, todo microfonado, sem nenhuma ideia preconcebida. Como Jarrett naquele 24 de janeiro de 50 anos atrás: ele estava tão esvaziado de qualquer conteúdo programático que o público local esboçou risos abafados logo ao término da sua frase inicial ao piano. Uma frase de 5 notas. Razão: ele reproduziu a melodia do sinal sonoro de chamada da Ópera de Colônia avisando o público que o concerto iria começar.