'O Barquinho', 60 anos: por que a canção segue encantando gerações?

Composta por Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, música ganhou clipe comemorativo gravado, em português, por artistas japoneses; no mundo todo, há mais de 3 mil versões

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Foto do author Danilo Casaletti

O escritor Ruy Castro escreveu em seu livro A Onda que Se Ergueu no Mar que a bossa nova foi “um grande verão de banquinhos, joelhos e violões, à beira-mar ou em mar alto”. O banquinho foi ocupado por nomes como João Gilberto, Carlos Lyra, Joyce e tantos outros. Os joelhos, sobretudo de Nara Leão, mas também das musas de Tom Jobim e Vinicius de Moraes que passavam a caminho do mar. O violão, da turma toda. Já a embarcação para navegar o mar certamente foi O Barquinho, música de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli (1928-1994). E ela foi longe. Agora, quando completa seis décadas, a canção acaba de ganhar uma homenagem inusitada: um clipe que reuniu músicos e cantores japoneses para interpretá-la – em português.

Roberto Menescal a deslizar no azul do mar: música nasceu durante um passeio de barco que deu errado Foto: Quinho Mibach

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O vídeo, que tem produção do baterista Kazuo Yoshida, demorou três meses para ficar pronto – cada um gravou sua parte sozinho – e contou com arranjo e participação de Menescal. Um dos cantores do clipe, Michinari Usuda, diz que conheceu a música há 36 anos, na voz de João Gilberto e, em 2012, abriu um show de Menescal no Japão. Agora, se diz feliz por cantar ao lado do ídolo, mesmo que virtualmente. “Penso que a música do Menescal é ele mesmo. É suave e relaxante como as ondas do mar”, diz.

Uma das cantoras que participaram da homenagem, Noriko Ito, que aprendeu o português depois de se apaixonar pela música brasileira, há mais de 20 anos, diz que O Barquinho é “bonita, simples e comunicativa”. “Para nós japoneses, seu ritmo e melodia singelas resumem o sentimento do ‘isso é bossa nova’.” 

Mas o que fez a canção percorrer o mundo por tanto tempo? Segundo Menescal, são quase três mil gravações, com versões em português, inglês, francês, espanhol e japonês. Ao lado de clássicos como Desafinado (Jobim e Newton Mendonça), Garota de Ipanema e Chega de Saudade (Jobim e Vinicius), ela se tornou um dos standards da bossa nova.

São 41 gravações de artistas brasileiros de diferentes estilos, incluindo João Gilberto, Elis Regina, Nara Leão, Baden Powell, Altamiro Carrilho, Jair Rodrigues, Fernanda Takai, Rosana e Sandy. Entre os estrangeiros, há gravações de nomes como Peggy Lee, Daniel Riolobos, Andy Summers, Karrin Allyson, Rita Reys, Shep Meyers, Stacey Kent, Emilie-Claire Barlow, Carmen Cuesta, Vero Pérez e Lucero.

Menescal não sabe dizer qual gravação levou a canção para o mundo – a mesma dúvida tem Ruy Castro. “Já perguntou para o Menescal?”, devolve o escritor. No Japão, o compositor desconfia que ela aportou quando Sérgio Mendes e Nara Leão fizeram uma série de apresentações por lá nos anos 1960. O cantor japonês Michinari acredita que os responsáveis por levarem a música ao país foram Nara e João Gilberto. “Os dois foram os mais populares cantores da bossa nova por um longo tempo aqui no Japão.”

A primeira pessoa a gravá-la foi Maysa – embora o assunto cause controvérsias – no disco Barquinho, de 1961, uma incursão da cantora no universo da bossa. “Eu até falei para a Maysa na época: vê lá, vai gravar O Barquinho, de repente o público não vai gostar de te ouvir cantando outro tipo de música. Mas, claro, queria que ela gravasse. O Bôscoli brincava que ela tinha o balanço de um bonde de Copacabana. E, de fato, ela não tinha o suingue da bossa. O arranjo da gravação, feito pela Luiz Eça, é fantástico. Quando acabou a gravação, os músicos da orquestra que tocaram as cordas se levantaram e bateram o arco no violino, aplaudindo. Todo mundo caiu no choro”, lembra Menescal.

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Logo depois, Maysa, Menescal, Bôscoli e os músicos embarcaram para uma temporada na Argentina. Na volta, o compositor descobriu que Paulinho Nogueira e Pery Ribeiro tinham gravado a canção. Menescal mesmo só foi cantá-la um ano depois, no histórico show de bossa nova no Carnegie Hall, em Nova York. A gravação está em disco. Nervoso, sem nunca ter se apresentado como cantor, errou a letra. “Eu estreei no Carnegie Hall. Por muitos anos, fiquei traumatizado com isso”. O escritor Ruy Castro ressalta o valor desse registro e o aponta como o seu preferido. “Foi a primeira vez que Menescal cantou em público – e logo no Carnegie Hall! O próprio Caruso (Enrico, tenor italiano) só chegou lá depois de décadas cantando.” 

Qual a fórmula do sucesso?

“Uma vez fui para a Austrália e lá tocam O Barquinho. Nos países nórdicos, a mesma coisa. Na Rússia, quando fui me apresentar, quando comecei a tocar, todo mundo acompanhou a melodia. Quando voltei lá três anos depois, já cantavam com a letra. Ela tem um borogodó que não sei explicar”, diz Menescal. 

Mas, o que é esse “borogodó”, termo tão difícil de se definir quanto achar uma explicação objetiva para o fato de uma música agradar diferentes gerações em diversos países? “A melodia é cativante, a letra, em qualquer língua, é fácil de guardar e a ideia de um barquinho no mar é deliciosa. Bem verão, bem bossa nova”, arrisca Ruy Castro.

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O produtor musical João Marcello Bôscoli, filho de Ronaldo Bôscoli, o letrista da canção, diz que o pai tinha muito orgulho da composição e definia o parceiro como um “craque” da melodia, o que ajudava na prosódia e na síncope – essa última, responsável pelo tal balanço que Bôscoli tanto valorizava. Ao buscar uma explicação lógica para o sucesso, ele igualmente aponta a melodia. “Não tenho uma resposta pronta. Sempre há o imponderável. Ela tem uma melodia, um som, agradável até para quem não entende o português. Ela vem de cima, tem intervalos interessantes; quando ela repousa, reforça esse repouso, e aí tem uma modulação. Na conclusão, é lírica. São intervalos matemáticos perfeitos, o chamado coeficiente divino”, diz.

Para o compositor e coordenador da área de música da Faculdade Santa Marcelina, Sérgio Molina, em O Barquinho a melodia passeia pelas notas, algo típico na bossa, mas tem a particularidade de apresentar, logo no início, de maneira inesperada, três diferentes tons até chegar ao semi refrão “o barquinho vai, a tardinha cai”, que tem melodia mais familiar. “Embora tenha essa sofisticação, não é difícil de tocar. Popularizou-se porque quem sabe tocar um violão médio consegue executá-la. Tem muita nota repetida e não tem grandes saltos, com notas muito agudas”, diz. “Se você estudou o começo dela, você a faz no todo. É uma repetição dos mesmos movimentos geometricamente descendo do agudo para o grave no braço do violão. Garota de Ipanema é mais difícil de tocar e cantar do que O Barquinho”, explica.

A cantora de jazz americana Stacey Kent tem uma ligação estreita com a música brasileira, sobretudo com a bossa nova, que ela conheceu ao ouvir, com 14 anos, um disco de João Gilberto. Foi por meio do cantor baiano que ela conheceu O Barquinho. “Foi uma revelação para mim. Eu nem sabia que seria cantora, mas teve um significado muito importante para minha vida”, diz, por telefone, em português, que ela aprendeu por conta da paixão de adolescente. 

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Stacey esteve no Brasil em 2011 para cantar na festa dos 80 anos do Cristo Redentor, no Rio. Ao sair do camarim, deu de cara com Menescal. “Eu disse ‘Roberto Menescal!’ e ele respondeu ‘Stacey!’. Não imaginava que ele me conhecia. Foi o momento mais lindo da minha carreira.” Em 2013, ela gravou O Barquinho no álbum The Changing Lights com Menescal no violão. Preferiu a versão em português à escrita pelo conterrâneo Buddy Kaye nos anos 1960, Litlle Boat. “Não acho a tradução confortável. O casamento da letra de Bôscoli com a música do Menescal é perfeito.” 

A brasileira Fernanda Takai fez um caminho inverso. Em 2009, lançou Kobune, uma versão em japonês escrita por Itoh Ryosuke, que não existia. “Ela é tão tocada por lá que pensei que já existisse. Gravei em uma versão mais eletrônica, quase disco. O Menescal brincou que eu a transformei O Barquinho em uma lancha”, diz a cantora. “Os japoneses, de fato, gostam dessa canção. Ela é certinha, gostosa. Ter uma música que sobreviva ao tempo é tudo o que quem faz música almeja”.

Qual foi a inspiração para 'O Barquinho'?

A letra criada por Ronaldo Bôscoli para O Barquinho fala em uma “calma de verão”. Entretanto, a música nasceu de uma situação de quase pânico - a história já é conhecida entre os amantes da bossa nova. 

Menescal, um craque também na pesca submarina, levou a namorada Yara (hoje, sua mulher), Bôscoli e a namorada, a jovem Nara Leão, além dos músicos do Tamba Trio para uma tarde em Arraial do Cabo, no Rio de Janeiro. Na volta, o motor do barco encrencou. Menescal e o barqueiro tentavam fazê-lo pegar. “”Taca-taca-taca-tá. Eram tudo o que ouviam do morto à gasolina que insistia em não funcionar. Quando o sol estava se pondo, o socorro chegou. Uma traineira puxou a embarcação. Aliviados, improvisaram “o barquinho vai, a tardinha cai”.

No dia seguinte, no apartamento de Nara Leão, lembrando do barulho do motor sendo tracionado e daquele único verso, Bôscoli queria saber de Menescal “o negócio do motor, aquele suingue legal”. “Era o barulho do motor que fazia o Taca-taca-taca-tá e ia morrendo, caindo. Ele achou que dava uma música. E deu”, conta Menescal. 

Entre tantas gravações, é natural que Menescal hesite em cravar a sua predileta. Porém, ele sabe dizer uma das que mais o surpreendeu: a da coreana Ann Sally que a gravou em português, em uma versão voz e violão, em Voyage, de 2001. No registro, Ann troca algumas letras. Então, “verão” vira “velão”. “Me apaixonei por isso. Verão é meio alemão, né? ‘Velão’ é mais bonito, flui mais. É uma das que eu mais gosto”, diz.

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O Estadão entrou em contato com Ann e contou sobre a citação de Menescal. A artista, que vive no Japão, respondeu, via e-mail. “Estou muito honrada. Escolhi essa música para abrir meu primeiro CD em uma versão quase à capella. Queria surpreender os ouvintes. Agora, sou eu que fico surpresa em saber que o autor ouviu e gostou”, diz.

Ann, que não domina o português, contou o que pensou na hora de gravar a canção. “Imaginei um pequeno barco em um lago calmo flutuando em meu coração. Pensei que a música havia sido feita para mim. Canto bossa nova para o público japonês. Ela é um presente muito especial para se espalhar pelo mundo todo”, diz a cantora, que espera um dia poder conhecer o “Senhor Menescal”, como ela chama o compositor.

Segundo João Marcello, o pai, Ronaldo Bôscoli, dizia que sua gravação preferida era a que Elis Regina fez para o disco Como & Porque, de 1969 – na época, Bôscoli e Elis eram casados. Uma gravação totalmente anti-bossa nova, com arranjos do maestro Erlon Chaves, que usou tumbadora e instrumentos de sopro. “Ela fez para me provocar!”, lembra João, de uma fala do pai. “Quando Elis gravou O Barquinho já tinha muitas gravações. Você vai gravar um standard com um arranjo standard? Foi o jeito dela para levar o barco para um mar novo, para outra levada.” Por coincidência, Stacey Kent e Ann Sally também apontam a versão de Elis como favorita e usam o mesmo adjetivo para qualificá-la: rápida.  No último 25 de outubro, Menescal completou 83 anos . Recebeu mensagens de amigos ao redor do mundo cantando O Barquinho. Prova de que, depois de seis décadas, a música ainda tem o vento a favor. 

MENESCAL COMENTA ALGUMAS DAS VERSÕES DE 'O BARQUINHO'

João Gilberto – ‘João Gilberto’ (1961)

"João e Tom (Jobim) combinaram de não me contar que iam gravar. Quando a faixa estava gravada, me chamaram na casa do Tom e me mostraram. Quase morri do coração! Eu era alucinado pelo João. Eu faço a harmonia mais complicada que ele. A dele é mais simples, mas é uma linda gravação.”

Elis Regina – ‘Como & Porque’ (1969)

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“Quando ela me falou que ia gravar, eu disse que não tinha nada a ver com ela. Ela disse: vou gravar essa p....! Chamou o (maestro) Erlon Chaves para fazer um arranjo totalmente anti bossa nova. Elis pulou fora de tudo o que já tinham feito com a música. A levada é muito interessante. É mas para um Despacito.

Nara Leão – ‘Garota de Ipanema’ (1985)

“Gosto muito. É a gravação mais real do que eu penso do que é O Barquinho. Se eu pudesse ter escolhido alguém para lançar essa canção, escolheria a Nara. Ela participou da criação da música, estava no barco, viveu aquilo. A gravação dela leva toda essa história.”

“Não acho que é uma música para o Tim. Penso que foi uma jogada apenas, de colocar uma bossa nova no disco. Não tenho nada para salientar. É interessante por ser o Tim Maia, mas não é uma grande gravação. Desculpa por dizer isso.”

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