Lenda do blues, B.B. King morreu na madrugada desta sexta-feira aos 89 anos, em Las Vegas, nos Estados Unidos. A informação foi confirmada pelo advogado do artista. O músico, que inspirou gerações de guitarristas, de Eric Clapton a Stevie Ray Vaughan, foi hospitalizado em abril por alguns dias por causa de uma desidratação. Ele tinha diabetes tipo 2 e, neste mês, recebia cuidados médicos em casa, segundo informou em uma publicação em uma rede social.
Uma noite de inverno definiu quem era BB King. Foi no Arkansas, em 1949, quando ele tocava músicas de Pee Wee Crayton para animar o baile. Era então um garoto de 24 anos com sua guitarra Gibson L-30 que havia acabado de comprar e turbinar com um captador a mais. Estava feliz e realizado mesmo na noite fria, aquecida pelos rodopios dos casais que um dia chamariam aquilo de rock and roll e pelo querosene que queimava dentro de um latão de lixo colocado no canto do salão. As vozes então ficaram mais altas do que os solos e dois rapazes se agarraram aos socos. Saíram rolando pelo salão, derrubaram o latão e só pararam quando as chamas se alastraram pela casa. King, seus músicos e todos os dançarinos saíram quase juntos pela única porta do bar. Mas Lucille, não.
O fim de Lucille, escreveu BB King em seu livro de memórias batizado Corpo e Alma do Blues, lançado em 1996, seria seu fim também. Desnorteado, ele livrou-se dos amigos que tentavam contê-lo e correu pelas chamas para buscá-la. As vigas da casa já caíam quando ele a avistou. E assim descreveria o episódio, quase 50 anos depois: “Salto a viga no momento em que a parede desmorona atrás de mim... Abaixo a cabeça, abraço a guitarra e parto como um raio para fora. A noite é uma visão maravilhosa. Minhas pernas estão chamuscadas, mas minha guitarra está bem.” A história se tornou um clássico e Lucille, o nome da mulher pela qual os dois rapazes se engalfinharam naquele bar, ficou para sempre. “Com a possível exceção do sexo de verdade com uma mulher de verdade, nada me traz tanta paz de espírito quanto Lucille”, diria depois.
BB King foi o último herói de sua geração na estrada e sua despedida começa a apagar uma era. Dos bluesmen em atividade, destes que salvam guitarras de incêndios, só sobrou Buddy Guy, hoje com 78 anos. Desde o resgate de Lucille, ele não mais saiu da estrada por uma questão de sobrevivência. Quando lhe perguntaram se não acreditava que o fim da estrada estaria próximo, esta foi sua resposta. “Quero ser melhor, muito melhor do que sou hoje. Não se está morto até morrer. E eu serei um garoto até o dia de minha morte.”
Seu projeto de vida parecia ser morrer sobre um palco. Aos 85 anos, BB fez sua última aparição no Brasil, com alguns shows, depois de ter anunciado por duas ou três vezes que deixaria de fazer turnês pelo mundo. Era triste e visível perceber o tempo fazendo sua cobrança sem lhe dar nenhum desconto. BB falava por tempo demais e chegou a tocar duas músicas por duas vezes, fazendo com que seus próprios músicos se entreolhassem constrangidos. Mais triste foi em abril do ano passado, durante uma apresentação em um clube de Saint Louis, no Missouri. Suas conversas se prolongaram tanto que algumas pessoas o vaiaram, pediram que parasse de falar, e outras foram embora. Seu empresário fez um comunicado de desculpas e conseguiu elevar o grau de humilhação de King. “Mr. King sofre de diabetes e acabou pulando uma das doses da sua medicação no dia do show... Simplesmente foi uma noite ruim para uma das lendas vivas do blues dos Estados Unidos. Mr. King pede desculpas e, humildemente, a compreensão dos fãs”.
Culpar empresários por seu tempo de permanência na estrada pode ser perigoso. Sua alegria por manter-se em cena era visível e seu alimento parecia ser o contato com as pessoas. BB King gostava de receber fãs no camarim antes e depois dos shows e usava dias livres para distrair-se tocando. Em 1999, em uma de suas vindas ao Brasil, decidiu dar uma coletiva de imprensa e fazer uma apresentação para crianças carentes em São Paulo. Entendia que a força de uma guitarra poderia salvar jovens de destinos tortuosos. E lembrava sempre de como a primeira delas caiu em suas mãos.
Os dias de domingo para Riley Ben King, seu nome antes de tornar-se Blues Boy King, eram de glórias e aleluia. Ir aos cultos protestantes era o que ele chamava de ponto alto na vida do “garoto franzino, de cabeça grande e com um fraco pelo sexo oposto”. Um fraco que lhe renderia 15 filhos, todos devidamente assumidos. “Aprendi que, quando uma mulher aparece dizendo que o filho é seu, ele é seu mesmo”. A maior prova de que Deus existia, para BB, se resumia em duas materializações da natureza. As mulheres que sentavam a seu lado nos bancos da igreja e a guitarra do pastor Archie Fair, o homem que operou um milagre de um tamanho que morreu sem fazer ideia.
Tudo começou no dia em que a mãe de BB King convidou o pastor Fair para visitar a família depois de um culto. O pastor entrou, passou a mão na cabeça de King e colocou a guitarra sobre sua cama, no quarto do garoto. Enquanto os adultos conversam sobre Deus, King via o diabo. “Eu fiquei de olho na guitarra deitada naquela cama, como se fosse uma garota que deseja ser acariciada. Ninguém estava olhando quando eu estendi a mão e, com todo o cuidado, acariciei a madeira”, narrou. A sedução foi interrompida pelo pastor. “Vá em frente, pode pegar”. Archie colocou o instrumento no colo do garoto de sete anos e criou ali uma lenda. “Vou lhe mostrar alguns acordes.” Nem precisava. Com três cordas, BB King definiria seu mundo. “Posso cantar um mundo de canções nessas três cordas”, dizia. Curiosamente, foi o que fez a vida toda.
BB é cria dos campos de algodões do Sul dos Estados Unidos. Suas lembranças eram habitadas pela voz do pai e do tio cantando os cânticos de plantation enquanto trabalhavam. O primeiro bluesman que o fez estremecer foi o cego Blind Lemon Jefferson. “Ele e sua guitarra pareciam um só. Não se sabia onde acabava um e começava o outro”. Com um pouco mais de resistência, passou a admirar também Lonnie Johnson, seu segundo ídolo. “Ele era delicado, mais sofisticado”.
A guitarra limpa de BB King, de poucas frases que parece ter ficado ainda mais econômica com passar dos anos, faria uma escola de seguidores. Um dos primeiros artistas negros a cantar para plateias brancas no Sul dos Estados Unidos, um dos últimos bluesmen a percorrer o mundo com solos de guitarra, sua ausência encerra uma era de guitarristas e coloca em discussão a sobrevivência de um gênero que, aos poucos, não tem mais referências vivas.
The Thrill Is Gone
How Blue Can You Get
Let The Good Times Roll
Key to the Highway
Blues Boys Tune
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.