O diabo no caminho de Mick Jagger

Longa biografia do vocalista do Rolling Stones destaca parceria incômoda com Satã

PUBLICIDADE

Por Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S.Paulo

Sexo, drogas e rock and roll. A biografia Mick Jagger (Companhia das Letras, 624 págs., R$ 49,50, nas livrarias dia 25) não deixa muito espaço para outros assuntos além desses três no dossiê sobre o vocalista dos Rolling Stones. E são duas centenas de páginas a mais que a biografia de seu grupo musical, publicada há quase 30 anos pelo mesmo autor, Symphony for the Devil: The Rolling Stones Story (1983), escrita pelo jornalista inglês Philip Norman, autor de biografias de John Lennon e Elton John. Não se pode dizer que Mick Jagger seja o que se convencionou chamar de uma biografia chapa branca, até porque o ícone do rock surge no livro como um superstar arrogante, sovina, narcisista e predador - enfim, um Casanova pouco preocupado com suas presas sexuais, aí incluídos mulheres e homens (David Bowie, entre eles). No momento em que os Rolling Stones comemoram 50 anos anunciando um retorno aos palcos e Mick chega aos 70 com quatro casamentos e sete filhos, não é uma biografia recomendável para novos fãs. Os antigos já sabem o que esperar.

PUBLICIDADE

O jornalista Philip Norman é um produto dos anos 1960. Adora rememorar a vida louca da swinging London, as orgias e os banquetes regados a álcool e alucinógenos. Conheceu Jagger numa entrevista, em 1965, dois anos antes de o cantor ser preso por porte de drogas e quatro antes do trágico concerto dos Rolling Stones em Altamont, na Califórnia, quando um jovem negro foi morto a facadas por membros da gangue Hell’s Angels, contratados para a segurança do show americano. Quanto às drogas, há uma novidade: Norman diz que o fornecedor de ácido lisérgico (LSD) aos Stones era um agente do FBI recrutado para um programa de contrainteligência (Cointelpro) que investigava “subversivos” (comunistas, feministas, negros militantes e simpatizantes). Em 1967, o Cointelpro de J. Edgar Hoover mudou o foco para os roqueiros - especialmente os ingleses - que, na sua visão, “corrompiam” a juventude americana. Os serviços secretos ingleses teriam auxiliado o FBI na missão. A batida que levou Mick Jagger e sua namorada Marianne Faithfull presos, em 1967, se deu graças a David Jove, que morreu em 2004, aos 64 anos. Ele usava, então, um sobrenome falso, Snyderman, e tinha também os Beatles na mira. Se condenados, eles não poderiam entrar nos EUA.

Quanto ao trágico episódio de Altamont, é fato que, na época, Jagger foi criticado na mídia como irresponsável por ter organizado o concerto e atribuído aos Hell’s Angels a segurança do show. Durante a apresentação de Under My Thumb, um garoto de apenas 18 anos, Meredith Hunter, foi assassinado em frente do palco. Norman tenta livrar a barra de Jagger, escrevendo que os diabólicos Hell’s Angels foram, na verdade, contratados pelos músicos do grupo Grateful Dead. Em várias outras passagens, o jornalista toma partido do biografado, que, no entanto, não colaborou com o livro. Mesmo Marianne Faithfull, citada a todo momento, é lembrada por meio da autobiografia, Faithfull, e não por longos depoimentos pessoais. E ela teria muito a dizer, especialmente sobre a adesão de Jagger ao satanismo (eles acabaram queimado toda a biblioteca “satânica” do vocalista, mas o biógrafo não revela as circunstâncias).

Curiosamente, Norman culpa Satã por todo o mal que perseguiu os amigos de Jagger e os coadjuvantes de seus filmes. Mais uma vez, o biógrafo reprisa a velha história do cantor de blues Robert Johnson, que teria feito um pacto como o demônio para obter sucesso (ouça Me and the Devil Blues para atestar se isso é verdade). A seu modo, Norman insinua que Jagger leu O Mestre e Margarida, do russo Mikhail Bulgákov, e ficou tão impressionado com a história que, influenciado por Marianne, compôs Sympathy for the Devil. Em síntese, Bulgákov fala que o grande triunfo de Satã foi o de colocar Pôncio Pilatos no caminho de Jesus, recusando salvá-lo da cruz. Jagger atualiza o baile organizado pelo diabo, no livro do russo, e fala de algumas celebridades históricas que herdaram o bastão de Pilatos: Hitler é o protagonista da canção de Jagger, mas há lugar para os bolcheviques que mataram a família real russa e os assassinos de vários membros da família Kennedy.

Publicidade

Jagger queria transpor O Mestre e Margarida para as telas. Ele, naturalmente, faria o papel de Satã. Desde que estreou como ator em Performance, de Nicholas Roeg, tinha obsessão de interpretar um anti-herói no cinema. Chegou, no máximo, a fazer o papel de um conhecido bandido australiano em Ned Kelly, dirigido por Tony Richardson. Desde que compôs Sympathy for the Devil, garante o biógrafo, Jagger passou a se interessar muito por satanismo e magia negra, especialmente pela obra do bruxo Aleister Crowley, que escandalizou a Inglaterra no começo do século passado ao defender a feitiçaria. Verdade ou não, uma das namoradas de Jagger, a atriz alemã Anita Pallenberg, era bruxa, segundo o biógrafo. Jagger pode não ser, mas aceitou atuar num filme maldito de Kenneth Anger, Lucifer Rising, ao lado de garotos nus submetidos a cenas de sadomasoquismo (incluindo mutilação). Detalhe: Anger tinha o nome Lúcifer tatuado no peito e acreditava ser a reencarnação de Aleister Crowley.

Anita Pallenberg, coadjuvante de Jagger em Performance, ficou viciada em heroína, que, segundo Norman, “viria a lhe devastar o rosto e o corpo perfeitos”. James Fox, que vinha de um sucesso de crítica, O Criado, dirigido por Joseph Losey, fez Performance e perdeu o pai, ficou desorientado, vagando meses pela América do Sul e abandonando a carreira no auge - só retornaria a ela anos depois. Jagger escapou ileso da maldição de Performance e das filmagens de Fitzcarraldo (ele desistiu do filme de Herzog, cuja produção registrou todo o tipo de tragédia), mas ficou conhecido como o rei da uruca nos sets. Nenhum de seus grandes projetos no cinema deu certo. Ele, porém, ainda tem uma carta na mão: quer revisitar o próprio passado num filme que o músico deve produzir e estrelar chamado Tabloid, retrato do magnata de imprensa Rupert Murdoch, dono do tabloide dominical News of the World, que queria destruir Jagger, acusando-o de porte de drogas, em 1967 (quando o jornal pertencia a outros).

Publicidade

Por direito, diz o biógrafo, os escândalos protagonizados por Jagger nos anos 1960 deveriam ter sido esquecidos décadas atrás. O cantor, diz ele, poderia ter desenvolvido uma carreira paralela nas telas tão bem-sucedida quanto a de Elvis Presley. Ou ser um político, usando sua rebeldia. Ou um poeta, como Leonard Cohen. Então, por que não foi? Porque Mick encarna o paradoxo do vencedor supremo, segundo Norman, “para quem as colossais realizações parecem não significar nada”. É um extrovertido, mas prefere a discrição, resume. Mick, em sua definição, é amoroso, atencioso com as mulheres, mas nem tanto com os homens.

O biógrafo conta que a atração sexual do primeiro empresário dos Stones, Andrew Oldham, por Jagger foi logo percebida pela namorada Marianne Faithfull. Oldham é apontado como o homem que colocou os Stones na estrada, graças ao talento empresarial (ele trabalhou com Mary Quant, a inventora da minissaia) e sua determinação de fazer dos garotos do grupo os antípodas dos Beatles. Se eles eram certinhos, então os Stones seriam diabólicos, segundo a lógica de Oldham. Jagger, esperto, seguiu o conselho à risca. Os primeiros álbuns dos Stones trazem referências explícitas ao diabo, presente nas capas dos discos, nas letras das músicas e, quem sabe, por trás da figura do biografado.

MICK JAGGER

Publicidade

Autor: Philip Norman

Tradução:Álvaro Hattnher e Claudio Carina

Editora: Companhia das Letras (624 págs., R$ 49,50)

TROPEÇÕES

Publicidade

Satisfaction

Biógrafo diz que é um “hino à masturbação” e exagera sobre o conteúdo sexual da canção

Troca de identidade

O fotógrafo Cecil Beaton é tratado como se fosse uma “lendária cenógrafa e fotógrafa real”

Publicidade

Drogas

Episódio sobre prisão de Jagger (1967) é contado de outro modo na biografia de Keith Richards

Duas caras

Na biografia dos Stones, Norman antipatiza com Jagger e denuncia seu comportamento manipulador. Nesta, ele apresenta o cantor como tímido e gentil

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.