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O encantador de pianos: conheça as histórias do afinador dos pianistas internacionais em SP

José Luiz da Silva, 63 anos, atuou na Sala São Paulo por 23 anos, e agora fornece instrumentos para alguns dos maiores eventos da música clássica do Estado. Mais do que ajeitar cordas perfeitamente, ele tem que afinar expectativas e até ser psicólogo

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Por João Marcos Coelho
Atualização:

O pianista é, entre os músicos, o que mais sofre com seu instrumento. Estuda em casa no seu piano preferido e amado, mas só toca em público em pianos que é obrigado a conhecer e “domar” em poucas horas antes do recital ou concerto com orquestra. A questão é tão espinhosa que Franz Liszt, na década de 1840, viajava com seu próprio piano. Existe, porém, um personagem que sofre ainda mais que os pianistas. É, sem dúvida, o afinador de pianos. Sobretudo os que trabalham fixos em salas de concerto. Eles têm de atender aos pedidos – melhor dizer ordens – muitas vezes conflitantes dos pianistas convidados.

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José Luiz da Silva, 63 anos, foi o responsável pela afinação dos pianos Steinway de concerto da Osesp desde 1999, quando a Sala São Paulo foi inaugurada, até 2022. “Naquele ano”, conta em entrevista ao Estadão, “também abri a ‘Loja de Pianos’”, em que também aluga pianos de concerto. José Luiz é figurinha carimbada: seus pianos e suas afinações frequentam de lá para cá os Festivais de Inverno de Campos do Jordão e as temporadas da Sociedade de Cultura Artística (desde o antigo teatro da rua Nestor Pestana), do Mozarteum, dos teatros do Sesc espalhados pelo Estado de São Paulo.

Resumindo: seu nome é sinônimo de afinação de alto nível, que atende às grandes estrelas do piano internacional. Nomes como o do russo Evgeni Kissin, do húngaro Andras Schiff, e de duas estrelas chinesas, Yuja Wang e Lang Lang, entre centenas de astros do teclado clássico e também popular, como Egberto Gismonti.

TB SAO PAULO SP 15/12/2023 CADERNO 2 - AFINADOR DE PIANOS/ JOSÉ LUIS DA SILVA - O afinador de pianos José Luís da Silva ao lado de um piano modelo Steinway, o mesmo utilizado na Sala São Paulo. FOTO TABA BENEDICTO / ESTADAO Foto: Taba Benedicto/ Estadão

Formado em composição e regência pela Unesp, diz que só fez um curso de afinação na vida: “Um mês, promovido pelo fabricante brasileiro Fritz Dobbert”. Seus filhos, no entanto, têm formação internacional: “Amadeus, de 32 anos, já cursou dois módulos na Yamaha no Japão”, cujos pianos ele representa no Brasil.

Pensei bastante nele ao ler um livrinho – pelo tamanho, menos de 200 páginas – sobre o tema, pela Editora Zain: o recém-lançado Floresta de lã e aço”, de Natsu Miyashita. Ela captura o lado poético do trabalho de afinação, alçando-o à condição de vocação artística tanto quanto a que impulsiona músicos. Conta a história do estudante Tomura, que no ensino médio ouve o som de um piano sendo afinado por Itadori na escola.

“Senti cheiro de floresta. Uma floresta no outono, momentos antes de escurecer, com o vento a balançar, as árvores e suas folhas. Cheiro de floresta já quase anoitecendo. Mas não havia nenhuma floresta por perto (...) Eu era o aluno solitário que acompanhava o visitante (...) Quando pressionou algumas teclas, senti mais uma vez emanar, da floresta que havia ali, no interior daquele instrumento, o cheiro das árvores a balançar”, diz o livro. Resumindo: o afinador “trabalha em silêncio para garantir que o instrumento ressoe com o mundo”.

Capa do livro 'Floresta de lã e aço', de Natsu Miyashita Foto: Editora Zain

Estas frases me lembraram a figura de Nelson Freire na Sala São Paulo, olhando desconfiado para o reluzente Steinway de concerto à sua frente e murmurando: “Este piano não gosta de mim” (no antológico documentário de 2003 de Walter Salles). José Luiz conta um caso que viveu com Nelson: “Toda sala tem o instrumento que integra a orquestra. Na Sala São Paulo, é o piano da Olga Kopylova. Acontece que o Nelson chegou para ensaiar, viu este piano e tocou nele a tarde inteira. Só no final é que soube que aquele não seria o piano do concerto. Insistiu em tocar naquele instrumento”, conta rindo.

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A relação dos pianistas com seus instrumentos oscila entre amor-e-ódio. Um dos maiores pianistas do século 20, o canadense Glenn Gould (1932-1982), tocou ainda criança, nos anos 1940, num Steinway modelo D de concerto catalogado como CD318. Passou décadas tentando reencontrá-lo, o que só acontecem em 1960.

“Por trás de todo grande pianista sempre há um grande afinador”, escreve a jornalista Katie Hafner no livro de 2008 A romance on Three Legs. Vale muito a leitura, que também mostra a comunhão de sensibilidades entre Gould e o afinador cego Verne Edquist. Só pra constar: um afinador da Steinway certa vez colocou a mão no ombro de Gould na loja da Steinway; o pianista o processou e à Steinway, alegando que tinha sido agredido pelo profissional. Idiossincrasia em último grau, patológico.

TB SAO PAULO SP 15/12/2023 CADERNO 2 - AFINADOR DE PIANOS/ JOSÉ LUIS DA SILVA - O afinador de pianos José Luís da Silva ao lado de um piano modelo Steinway, o mesmo utilizado na Sala São Paulo. FOTO TABA BENEDICTO / ESTADAO Foto: Taba Benedicto/ Estadão

A arte da afinação

Imagine um desses bólidos da Fórmula 1. Você já assistiu ao séquito de mecânicos “trabalhando” nas entradas do carro, preparando-o para o grande momento da largada na pista. Eles usam chaves de fenda e outras ferramentas para colocar o motor no ponto exato e maior rendimento.

O afinador de piano dos teatros espalhados mundo afora é o técnico que “prepara” o bólido, no caso um Steinway modelo D de concerto, ou um Bosendorfer, e em muitos espaços seletos também o Yamaha de concerto.

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Munido de uma chave de fenda, ele isola com cunha e feltro duas das três cordas que compõem o som de uma nota central no teclado composto de 88 teclas, da mais grave à mais aguda. Com a chave especial tensiona a afinação até chegar ao padrão contemporâneo de 440 herz. Repete isso com as 250 cordas do piano. É um fino trabalho de ourivesaria. Um erro mínimo pode ser fatal. Por exemplo, tensionar além do limite, e as cordas poderão arrebentar no momento do concerto. Por isso são muito valorizados, sobretudo no domínio da música de concerto.

Os pianos verticais, de armário, devem ser afinados uma vez por ano, segundo a Fritz Dobbert, mas os das salas de concerto e de cauda inteira são afinados várias vezes por semana, sempre no dia de cada concerto. Por isso duram, em média, cinco anos.

Detalhe: os demais instrumentos de uma orquestra sinfônica – e eles podem ser mais de uma centena – são afinados pelos próprios músicos no momento em que o oboé emite a nota lá, para todos afinarem naquele diapasão. Com exceção do piano. A afinação de piano e tão complexa e leva tanto tempo que exige profissionais como José Luiz da Silva.

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Afinação à la carte

“O maior problema do afinador é atender 100% ao pedido de cada pianista: um quer o piano de sonoridade mais doce, o outro mais brilhante”, diz José Luiz. “O instrumento não suporta modificações radicais de um dia para o outro. Resumindo: o afinador precisa ter jogo de cintura, mas de uma forma que não comprometa o pianista seguinte”.

José Luiz conta que no final de 2022, “a Fundação Osesp fez uma licitação para afinação da Sala em 2023. Perdi por uma diferença de 100 reais, imagine”. Última pergunta, pra desfazer um “mito”, segundo o afinador: “O piano fica melhor quanto mais é tocado?”

“É verdade, mas ele vai sofrendo com o tempo. Um piano de concerto na Sala São Paulo, por exemplo, dura cinco anos. Os pianistas sacam isso e não querem correr risco de quebra de cordas. Outro mito: piano antigo, do começo do século, em geral não é maravilhoso como dizem, afinal envelheceu, tem 100 anos. Vale lembrar que piano afinado em 440 hz suporta 20 mil quilos de compressão de corda”.

TB SAO PAULO SP 15/12/2023 CADERNO 2 - AFINADOR DE PIANOS/ JOSÉ LUIS DA SILVA - O afinador de pianos José Luís da Silva ao lado de um piano modelo Steinway, o mesmo utilizado na Sala São Paulo. FOTO TABA BENEDICTO / ESTADAO Foto: Taba Benedicto/ Estadao

‘Causos do Zé' com grandes pianistas do mundo:

  • Evgeni Kissin (52 anos):

“Ficou uma semana ensaiando na Sala, tocando no Steinway, Ele é supertranquilo, gente boa. Mas o elevador que sobe o piano para o palco quebrou. O que fazer? O Yamaha estava lá em cima. Ele não toca, disse a produção. Mas não tinha outro jeito”.

Recital Sala São Paulo em 14/6/2015 (só áudio)

  • Lang Lang (41 anos)

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“Quando veio pela primeira vez (em 2012, na Sala São Paulo), o pianista chinês parecia um moleque, com a mãe e a tia. Não deu dor de cabeça nenhuma. Também se apresentou no Tomie Ohtake, loquei o Steinway. Confesso que fiquei com medo. Mas ele tocou sem experimentar previamente o instrumento”.

Flash de ensaio na Sala São Paulo em 2012: (0′19)

  • Egberto Gismonti (76 anos)

“Foi numa das unidades do Sesc. Era inverno. Ele sentou-se, tocou um acorde e perguntou pelo afinador. Me disse: ‘O piano não tá tocando nada’. Eu respondi: ‘Toque mais um pouquinho’. ‘Não vou tocar’. Fiz 15 minutos de faz-de-conta, ele com as mãos no bolso, se aquecendo. Depois de 15 minutos, as mãos já aquecidas, tocou, tinha uma coisinha de nada, mas foi fácil de ajustar. Ou seja, não fiz nada. Tem um lado psicológico para o qual o afinador precisa atentar. Era um Steinway modelo B, três quartos de cauda”.

“Retrato em branco e preto”, Egberto Gismonti Sesc 14 Bis 28/10/2023

  • Artur Pizarro (55 anos)

“O pianista português não gostou de nenhum Steinway na Sala. Queria o piano que fica no segundo andar da Sala São Paulo. É a sala de ensaio do coro. Era um recital. Isso desmistifica um pouco o preconceito em relação à Yamaha”.

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“Barcarolle”, de Chopin , num piano Bechstein de 1911

  • Yuja Wang (pianista chinesa de 36 anos, a maior estrela atual do piano). Recital Sala São Paulo, 2/10/2018

“Na primeira vez que veio, ela escolheu o piano. Na segunda, em 2018, perguntei se queria escolher – nestes casos sempre preparo dois pianos. Mas ela me disse: ‘Não, o que você escolher está bom’”.

Yuja Wang, “vestida para matar”, sola o concerto no. 1 de Liszt no Royal Albert Hall, no Festival “PROMS” de 2022

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