O pianista e compositor Felipe Senna acaba de prestar uma homenagem ao artista Filó Machado, uma das genéticas artísticas mais desafiadoras da música brasileira. Senna orquestrou, regeu e tocou piano no tema Laurence, lançado pelo violonista no disco Jazz de Senzala, de 2004. Um trabalho tocante e revelador do melodista que Filó também é. Em geral, os elogios são feitos ao suingue que sai de sua mão direita e às harmonias da esquerda lançadas como se fossem sopros de sua respiração. Se já era estupenda na criação de Filó, Laurence, na versão de Senna, ressurge como uma orquestração da própria paixão, com seu começo doloroso e profundo no clarinete de Marisa Lui, o temor dos apaixonados nas vozes do violoncelo de Rafael Cesário e do piano do próprio Senna e o alcançar de qualquer felicidade que não se controla mais criada por um grupo de 16 músicos, com um incontornável destaque para as flautas soprano, alto, baixo e contrabaixo de Léa Freire.
O tema é o segundo apresentado por Felipe Senna como parte de um projeto no qual ele tem orquestrado músicas de grandes compositores para apresentá-las com sua Orquestra Câmaranóva. O baixista Arismar do Espírito Santo foi o primeiro, com um vídeo no ar, e os próximos serão o pianista Amilton Godoy, a pianista Silvia Goes, o saxofonista Douglas Braga e o baterista Edu Ribeiro. Depois virão um tema do próprio Senna e, na sequência, um de Léa Freire. Há algo de resistência cultural também por trás de cada tema. Senna ganhou a verba em um edital público do Proac para realizar apresentações sobre cada artista de sua lista e assim seria até que a pandemia fechou todos os espaços. Ele então migrou o projeto para a produção online e decidiu fazer um vídeo para cada compositor. A edição, no melhor estilo guerrilha autoral, também é sua. Edição e masterização, aliás, têm acabamentos impecáveis.
Laurence tem uma história curiosa. Ela foi feita em 1989, dias depois de Filó chegar à França, onde viveria por cinco anos. Ao se deparar com uma linda parisiense com a qual não podia conversar fluentemente, já que seu vocabulário em francês ainda não tinha as palavras que a beleza da moça mereciam ouvir, ele resolveu compor.
Depois do tema, entra a imagem de Filó Machado gravada logo depois de ele assistir ao vídeo pela primeira vez. E aí, fica ainda mais bonito. Apesar de seu pensamento musical cheio de traições às lógicas, e ainda assim abrangente, redentor e de uma linguagem sem sucessores, Filó, aos 69 anos, é uma criança. Ele fala com um coração que parece maior do que as palavras e tenta explicar o que nem precisa mais. “Eu jamais podia imaginar que iria acontecer uma coisa dessas na minha música, tá entendendo?”, começa. “Estou como aquele cara que não tem o que dizer, não sabe o que dizer”, prossegue. E termina: “Isso é uma coisa pra eu pegar minha família assim e falar para eles, ‘olha minha música aqui, olha a minha composição’. Nunca vi nada tão emocionante.” A melhor explicação, então, fica com Felipe Senna: “Mas Filó, isso é sua música. A gente colocou você no nosso lugar. Você está ouvindo de fora as coisas incríveis que você escreve.”
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