ESPECIAL PARA O ESTADÃO - Quando sua Sinfonietta para Orquestra de Câmara Opus 19 foi escolhida pela crítica argentina como a melhor obra erudita de 1952, Astor Piazzolla, então com 32 anos, sentiu que seu futuro estava definido: seria um compositor clássico. Ganhou bolsa para estudar em Paris com Nadia Boulanger, a mestra preferencial de grandes músicos do mundo inteiro, de Aaron Copland a Leonard Bernstein, entre os norte-americanos, Almeida Prado e Egberto Gismonti entre os brasileiros. Àquela altura, já acumulava uma produção clássica, ou erudita, consistente. Seu lado “erudito”, todavia, ficaria soterrado por sua revolucionária criação no mundo do tango. Seu “tango nuevo” o transformou em músico de prestígio universal.
Centenário
Entre as muitas comemorações do seu centenário de nascimento, no ano passado, uma se destacou, por jogar luzes justamente nesta esquecida produção clássica: Piazzolla: Obras Desconocidas para Piano Solo (Virtuoso Records). Há nele ao menos três criações ambiciosas: Suíte para Piano Opus 2; Sonata Opus 7; e a segunda suíte, catalogada como n.º 2. Completam o álbum Quatro Prelúdios e Tardecita Campeana, disponíveis nas plataformas de streaming. A façanha da pianista Natalia González Figueroa acaba de ser recompensada com a conquista do Prêmio Gardel 2022 de melhor álbum clássico do ano na Argentina. “Todas as peças estão editadas”, conta Natalia ao Estadão. E esquecidas a ponto de se destacar como novidade ao construir um recital inteiro apenas com as peças “eruditas”.
Os Três Prelúdios já foram gravados algumas vezes, mas as demais obras permaneciam praticamente inéditas até agora. Reuni-las dá a medida da qualidade da criação pianística clássica de Piazzolla.
São obras de juventude, a maior parte composta nas décadas de 1940 e 1950, exceto o Prelúdio 1953 e os Três Prelúdios, que Piazzolla criou no final da vida, em 1989. “Foi uma grata surpresa descobrir como são obras consistentes para piano. Ainda estudante, Piazzolla foi aluno de composição de Alberto Ginastera em Buenos Aires, e de piano com Raul Spivak”, lembra Natalia.
Ela anota as influências que as nortearam, já denunciando um ecletismo que marcou sua vida criativa, desde Bach e Stravinski até Bartók, Debussy, o jazz e o tango. Mas ressalta que “sempre há um toque pessoal característico que distingue sua música”. E decreta convicta: “Não são peças de estudante, mas obras de um compositor experiente e formado, com alto nível de complexidade e criatividade”.
DNA
De fato, uma audição mais atenta já indica um DNA pessoal do compositor. Com direito a movimentos de alta qualidade artística e desafios técnicos ao intérprete, como o segundo movimento da Sonata, um coral com variações. Ou o rondó final, que, segundo Natalia, “embute uma milonga oculta no segundo tema”.
Ali começava, modestamente, um itinerário de fusão de qualidade de invenção com um gênero popular por excelência como o tango. Um processo que, no final da vida, Piazzolla resume nos três prelúdios de 1989, breves, porém luminosas sínteses de sua arte inconfundível.
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