Ainda menina, sentada ao lado do avô ouvindo gravações dos Três Tenores, Camila Titinger jamais poderia imaginar um dia estar cantando ao lado de Plácido Domingo. “E olha que eu sempre fui de sonhar muito”, ela diz, a emoção evidente na voz. Na verdade, ela estaria ao lado do tenor esta semana, na Espanha. Mas precisou vir ao Brasil, onde vai se apresentar com a Osesp na Sala São Paulo. “Ele entendeu que era importante para mim estar aqui neste momento fazendo esses concertos.”
Camila canta desta quinta, 28, a sábado, 30, a Sinfonia n.º 4 de Mahler, sob a regência de Marin Alsop. São concertos importantes. Pela presença dela, mas também de um outro jovem brasileiro como solista: o pianista Lucas Thomazinho, que toca a Totentanz de Liszt. Camila está com 29 anos, Lucas, com 23. São dois dos mais promissores artistas do País, com carreiras em pontos diferentes, mas em rápida ascensão.
Em meio a uma rotina intensa de ensaios, o Estado conversou com os dois. Ao longo do dia de ontem, 27, Lucas reuniu-se com Alsop para discutir detalhes da interpretação, escolheu o piano, ensaiou com a orquestra. Camila, além do ensaio, também participou como convidada de aulas da turma de regência da Academia da Osesp.
“Mahler tem sido um companheiro”, diz Camila. A quarta sinfonia ela cantou pela primeira vez há três anos, com a Orquestra Experimental de Repertório. Mais tarde, repetiu a peça com a Filarmônica de Minas Gerais. “Era um programa com a sinfonia e com árias de Mozart e isso me fez amadurecer e perceber a peculiaridade de estilos, um aprendizado importante, que aprofundei depois na Europa”, conta.
Para ela, cantar com a Osesp tem um significado especial. “Eu integrei o Coral ECO, infantil, e o Coral Juvenil da Osesp, então no momento em que canto como solista sinto que uma relação que foi desenvolvida desde pequenininha chega a um novo ponto.” Quando ela fala em “desde pequenininha”, não está exagerando. Camila começou a carreira na infância. A mãe é pianista, o pai, médico. E ambos viram na filha um talento para o canto – que Camila logo abraçou. Integrou o programa Gente Inocente, da Globo, gravou discos, fez turnês – isso tudo ao mesmo tempo que chegava à adolescência.
“Eu me considerava uma cantora de MPB, meus ídolos eram Elis Regina e Tom Jobim”, ela lembra. Aos 14 anos, resolveu que queria se dedicar à escola, não queria mais cantar. Até que, na hora do vestibular, prestou para música. Entrou na Unesp, começou a ter aulas com Martha Herr, passou a integrar o Ópera Estúdio da Escola de Música do Estado de São Paulo e, depois, a Academia de Ópera do Theatro São Pedro. “A ópera foi acontecendo, foi algo muito natural na minha carreira”, explica.
Em 2017, foi ouvida por Plácido Domingo, que a convidou para um concerto. “Eu fiz mala para três dias, era perto do Natal. Mas, no final, ele e a mulher dele me disseram que eu precisava ir para Valência, onde ele tem um programa de treinamento de cantores. Desde então, me divido entre a Espanha e a Alemanha.” E, a partir de abril, Londres entra na rota. Ela cantará Don Giovanni na Garsington Opera, na Inglaterra, em uma produção que viaja em seguida para Paris. “Estou em um momento de batalhar muito, de investir na carreira, conseguir oportunidades. Há muito pela frente.”
Transição. Lucas Thomazinho não é de falar muito. Ou melhor, fala por meio do piano. “Lucas talvez seja o maior talento natural de sua geração”, diz o crítico musical Irineu Franco Perpetuo. “Ele tem enorme facilidade e você ainda não consegue enxergar nenhum limite técnico que ele não possa superar. É a bola da vez dessa geração”, completa.
Os pais eram pianistas. E, aos 9 anos, ele foi estudar na Fundação Magda Tagliaferro, em São Paulo e passou mais tarde a ser apoiado pela Cultura Artística. Em 2014, entrou na USP, onde teve aulas com Eduardo Monteiro. Foi finalista do Concurso de Santander, premiado no Concurso BNDES de Piano do Rio de Janeiro. E, em fevereiro deste ano, foi para os Estados Unidos fazer provas para mestrado.
“Eu acho que vivo hoje o período de maior importância da minha formação”, ele explica. “Continuo a estudar, claro, mas já faço uma transição para a vida profissional. As oportunidades estão surgindo.” Ele toca este ano com a Experimental de Repertório, com a Filarmônica de Minas Gerais, faz recital na Sala Cecília Meireles. E, claro, há o concerto como solista com a Osesp, enfrentando a Totentanz, de Liszt. “É uma peça meio macabra, com temas que vão soar familiares de alguma forma ao público. E, do ponto de vista técnica, extremamente difícil, exigiu enorme preparo.”
A carreira de concertista o agrada, assim como a chance de tocar música de câmara. “Quero no futuro tocar com grandes orquestras, claro, mas sem perder a chance de fazer música em conjunto.”
'Schubert e Bartók fazem minha cabeça', diz Lucas Thomazinho
Como o piano surgiu em sua vida? Meus pais eram pianistas, fizeram oito anos de conservatório. E eu com 2, 3 anos, já brincava no piano. Minha mãe me dava aulas, mas sem a obrigatoriedade de estudo. Aos 8 anos, porém, a ideia de aprender ficou mais clara, eles perguntaram se eu estava pronto para estudar seriamente e eu fui.
Você estudou na USP com Eduardo Monteiro. Como foi essa experiência? A maneira como ele trabalha é impressionante, vai muito a fundo nas coisas. Logo que nos conhecemos, preparei o Rudepoema, de Villa-Lobos, e passamos quatro aulas indo do começo ao fim, passagem por passagem, antes de tocar a peça inteira.
Há um compositor ou período que lhe interesse em particular? Há, mas sei que isso vai mudar. Há um tempo, Chopin e Liszt me fascinavam, aquela coisa do jovem descobrindo as possibilidades do piano. Hoje, Schumann e Schubert fazem mais a minha cabeça, assim como modernos como Bartók e Barber.
Há peças que gostaria de fazer no futuro? As sonatas de Beethoven, porque mostram toda a história do compositor, todo o trajeto artístico que ele desenvolveu ao longo de sua vida.
‘Ópera surgiu de modo natural para mim’, diz Camila Titinger
Quando você começou a cantar, ainda na infância, a ópera já fazia parte de seu imaginário? Na verdade, não. Meu pai é médico, gostava de música clássica, mas também de rock. Minha mãe se formou pianista, mas sempre próxima do universo popular. E, quando comecei a cantar, me definia como uma cantora de MPB, ainda que cantasse também trechos de musicais. A ópera veio mais tarde, acho que tudo foi acontecendo de maneira muito natural na minha vida.
Você hoje vive entre Alemanha e Espanha, cantando também no Brasil. No próximo mês, inicia temporada em Londres. Como vê essa vida nômade? É muito difícil, uma ficha que tem caído agora para mim. Eu sempre fui muito próxima da minha família, isso é a minha base, então a distância e a ausência são complicadas. Mas entendo que este é o momento de investir meu tempo e minha energia na minha carreira, aproveitando as possibilidades que têm surgido.
Como foi para você se apresentar com Plácido Domingo? Foi tudo bem louco (risos). Eu cantei com ele e também fui regida por ele. Plácido Domingo tornou-se um padrinho, tem me apresentado a pessoas importantes, apontando caminhos. Mas o trabalho duro continua. É preciso sempre estar batalhando.
OSESP apresenta peça sobre heroínas do século 19
“Todo grande sonho começa com alguém que sonha; a força, a paciência, a paixão que nele existem; almeje as estrelas e mude o mundo.” As palavras finais entoadas pelo coro definem o sentido da peça Across the Line of Dreams, da compositora Roxanna Panufnik, que também integra o programa dos concertos desta quinta, sexta e sábado.
A peça acaba de estrear nos EUA pela Sinfônica de Baltimore pelas maestrinas Marin Alsop e Valentina Peleggi. Duas regentes, assim como pede a partitura, que prevê também a presença de dois coros – o que está intimamente ligado ao tema da obra, que homenageia duas figuras importantes do século 19.
No texto de apresentação da obra, Panufnik diz que pretendeu, com a peça, celebrar a trajetória de duas “mulheres extraordinárias que deram tudo para salvar seus povos”: a norte-americana Harriet Tubman e a indiana Rani Lakshmibai, ambas nascidas nos anos 1820, ainda que em diferentes partes do mundo.
Nascida em Maryland, Tubman criou uma rede clandestina que ajudava na fuga de escravos no sul dos Estados Unidos. Rani Lakshmibai tornou-se rainha depois da morte de seu marido. Ela também perdeu o filho e adotou um menino que pudesse ocupar o trono um dia. O governo britânico, no entanto, não o aceitou como herdeiro e ela liderou seu povo em uma batalha, morrendo pouco antes de completar 30 anos.
Em Across the Line of Dreams, cada personagem é representada por uma das regentes, por metade da orquestra e por um coro. Na música escrita para Tubman, Pannufnik evoca hinos cristãos em referência à fé da norte-americana. No caso de Lakshmibai, uma das referências é uma música escrita em sua homenagem logo após a sua morte.
O texto da obra foi escrito por Jessica Duchen, que já havia colaborado com Roxanna Panufnik, nascida na Inglaterra em 1968, na ópera Silver Birch, que tratava do tema das relações destruídas pela guerra. Estreada em 2017, a obra reuniu mais de 180 pessoas, incluindo alunos de escolas locais e membros da comunidade, que atuaram ao lado de profissionais. Outra de suas obras recentes é Abraham, concerto para violino que incorporava elementos da música cristão, judaica e islâmica. OSESP Sala São Paulo. Praça Júlio Prestes, 16, tel. 3777-9721. 5ª (28) e 6ª (29), 20h30, e sáb. (30), 16h30. R$ 55 a R$ 230
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