Algo doía fundo sempre que Patricia Bastos via amigos músicos irem a programas de rádio ou TV acompanharem outros artistas. Quando o apresentador perguntava de onde eram, mentiam. Fortaleza, Recife, Maceió, mas nunca diziam Macapá. Do que tinham vergonha? Da origem nortista de pele morena, cabelos negros e sangue afro-indígena? Das piadas sobre as incertezas de um “fim de mundo” próximo ao Oiapoque? Ou seria a insegurança de uma terra que não produziu músicos que se tornassem referenciais de projeção nacional?
Depois que Patricia cresceu e se tornou cantora, sentiu tudo ao contrário. Afirmar-se como amapaense lhe soava uma missão. Mais ainda. Se os anjos das águas amazônicas ajudassem, ela traria quem pudesse em seu barco. O Amapá tem uma música que o Brasil não conhece e uma gente que cria canções com uma sensibilidade arrebatadora. Seu novo disco, Batom Bacaba, tem força para dois feitos. Ao mesmo tempo em que a coloca como uma das grandes cantoras em ação, pode dar voz a compositores locais que nunca estiveram em uma cena, que nunca contaram com um porta-voz. Os tambores do marabaixo, o ritmo mais forte da região, jamais tiveram algo parecido com um presente que o maracatu pernambucano recebeu nos anos 1990 chamado mangue beat. Foi só depois dele que uma geração inteira conheceria a produção cultural de Pernambuco.
Há duas forças disputando espaços no álbum Batom Bacaba, com produção e lançamento patrocinado pela empresa de cosméticos Natura. De um lado, existe a presença dos dois produtores de personalidade artística forte, o violonista e compositor Dante Ozzetti e o músico Du Moreira. De outro, as informações trazidas nos genes de Patricia. A boa notícia é que a disputa não tem vencedores, o que faz o álbum chegar a um equilíbrio saudável entre a busca pelos tempos de hoje nos detalhes de estúdio e a expressão de uma música que brota do chão de Macapá há muitos anos. Se um dos dois lados vencesse, o resultado não seria o mesmo. O show de lançamento em São Paulo, depois de uma apresentação no Rio de Janeiro, será na próxima quinta-feira, dia 6, no Centro Cultural Rio Verde.
A abertura do disco com Loba Boba, de Zeca Baleiro e Joãozinho Gomes, grande compositor paraense que vive no Amapá, é uma falsa pista. Nada será de novo tão sintetizado quanto esta base. Os caminhos se abrem mais com o passar do tempo, mas Patricia sempre vai caminhar entre o lirismo das canções e os arranjos pequenos e sutis de Dante. Luz de Lampião, de Nilson Chaves, também paraense, e Joãozinho, deixa a voz livre para cortar o som das cordas e de poucos ruídos eletrônicos até ganhar uma base mais cheia de teclados e mais violão. Tudo isso enquanto a música ganha força na poesia de dialeto nortista: “Nos sentu naquela terra, pra modiar / Sob o pé da gameleira tinha um luar / E a lua disse em verso / Com a voz do vento / Que nós semu como o sol / Vivemo nos bucejo da manhã”.
O encontro de Patricia com o Dante compositor acontece em O Desenho da Cidade, que ele fez com Luiz Tatit. E a parceria volta em Brisa e Brasa e Horizonte (com a voz de Ná Ozzetti). Depois, Dante aparece com Joãozinho Gomes como autores de Tudinha Acesa. São os momentos de encontro da linguagem de Patricia com a visão lírica e harmônica de Dante, algo que blinda o álbum de qualquer possibilidade de torna-se didático, regional, folclórico.
Batom Bacaba, a música, é dos momentos maiores do álbum. A canção é do violonista amapaense Enrico Di Miceli com versos de Joãzinho Gomes, sempre ele. Enrico é um craque. Suas escolhas nunca são as mais fáceis mas sua música nunca fica difícil, intransponível. Ele é dono de uma habilidade harmônica impressionante e criador de melodias desconcertantes. Isso tudo sobre letra de lirismo feminino de Joãozinho: “E a maloca então ficou maluca / Como se ali passasse a pororoca / E a passarada fez uma muvuca / Cantando essa cantiga curiboca...”.
Outro nome das terras do Norte é o de Paulinho Bastos, irmão de Patricia. Percussionista, pesquisador, especialista nos tambores de marabaixo e da batucada amapaense (outra expressão que não existe fora de Macapá), ele é também autor de três das músicas de maior poder de comunicação no disco, Domingo de Páscoa, O Batom Que Não Viu e o afro Banto. Paulo está em processo de finalização de seu próprio álbum, uma promessa quando se conhece um pouco da forma como ele pensa música. A parceria de Joãozinho Gomes com Val Milhomem, outro importante compositor macapaense, entrega duas músicas de força pop e poesia afiada, a bela Mei Mei e a dançante Mameluca. Se fossem outros tempos, a primeira seria forte candidata ao que se chamava de “carro-chefe”, a que primeiro tocaria nas rádios.
Patrícia Bastos é filha de pai educador e músico e mãe cantora, Dona Oneida, a primeira mulher do Amapá a gravar um disco, produzido pelo mestre das guitarradas Manoel Cordeiro. É desse barro, dos encontros entre músicos em sua sala com todos os quatro irmãos tocando e cantando, que Patricia foi feita. Aos 18 anos ela já cantava em um grupo da noite com o qual aprendeu os primeiros truques no Bar Carinhoso, a Banda Brinds. Depois, cantou em grupo de baile e passou pelo avassalador teste dos cantores de carnaval.
Seu primeiro álbum saiu em 2000, chamado Pólvora e Fogo, só com compositores do Amapá. Depois vieram Patrícia Bastos In Concert (ao vivo, de 2004); Sobre Tudo (2007); Eu Sou Caboca (2009) e o premiado Zulusa (2013). Foi com este disco que Patrícia ganhou, em 2014, os prêmios de melhor cantora regional e melhor disco regional durante o 25.º Prêmio da Música Brasileira. Chamá-la de regional é redutor, mas o mercado ainda entende assim, em catalogação por prateleiras. Seu disco de agora faz exatamente o contrário, a retira da seção dos regionais para torná-la mais abrangente.
“Eu senti a necessidade de procurar a história de Amapá e de levá-la para o mundo”, diz Patricia. “Eu sempre senti falta dessa história, as pessoas daqui tinham vergonha de dizer que eram do Norte. Resolvi então que, a partir de agora, eu iria cantar a minha aldeia.” E é assim que ela acaba cantando o mundo.
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