É impossível explicar racionalmente o que torna uma canção emblemática. Às vezes, a letra, outras, a melodia ou a interpretação. Na maior parte das vezes, é a mágica junção entre letra e música que invade corações e mentes planeta afora. Extrapola suas origens, quando é uma daquelas obras-primas clássicas.
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A palavra “clássica”, atribuída à música de concerto, quer dizer exatamente isso: a canção que transcende o tempo, mantém-se impactante hoje como no momento em que foi gestada. Aqui, não se escandalizem, Bach e Beethoven convivem com Pixinguinha e Tom Jobim, Cole Porter e George Gershwin.
E quando olhamos para canções mais ou menos contemporâneas, que brilharam no último meio século, Blackbird, a ingênua e romântica canção composta e gravada por Paul McCartney em 1968, é uma espécie de obra-prima clássica cantada, tocada, reinventada por bilhões de pessoas no planeta.
Não é novidade que desde o início de sua carreira fulminante os Beatles reconheceram em entrevistas sua dívida para com a música negra, repetindo que se inspiraram em Chuck Berry, Little Richard, Fats Domino, The Shirelles e outros gigantes do R&B. Mas a estrutura musical simples e os versos líricos evocando um pássaro que voa em liberdade em Blackbird nada têm a ver com a música negra.
Só que não, como mostra o recém-lançado livro Blackbird: how black musicians sang the Beatles into Being- and sang back to them ever after (272 pgs., Penn State University Press, dezembro/2023, sem tradução brasileira à vista), de Katie Kapurch e Jon Marc Smith, professores na Universidade do Texas.
Ele esmiúça a poderosa repercussão da canção no universo da música negra norte-americana, que a transformou em ícone do movimento de luta pelos direitos civis da década de 1970 em diante.
Muito bem fundamentado em sólidas pesquisas, parte de entrevistas com músicos negros para contar uma nova história, a do “voo transatlântico”, para caracterizar um diálogo de idas e vindas moldado por músicos negros nos Estados Unidos e em outros lugares, incluindo Liverpool.
Kapurch e Smith tecem uma linhagem que remonta às origens da música popular norte-americana, envolvendo o melro (pássaro preto) original do século 20. Lá estão estudados a cantora Florence Mills, que em 1926 encantou a Europa com o show Blackbirds, e o Rei das Doze Cordas, Leadbelly.
O voo inclui Nina Simone (que compôs com Sacker e gravou uma canção chamada Blackbird em 1963), Billy Preston, Jimi Hendrix (Night Bird Flying). Até a incrível cantora Bettye LaVette, 77 anos e de voz rascante, que assume a persona do pássaro preto em sua performance extraordinária da canção de Paul no álbum Blackbirds (2020, Verve), acrescentando um “s” sinalizando estes maravilhosos voos.
Cuidadoso, o livro não afirma, mas induz o leitor à sensação de que Paul McCartney foi oportunista. Recontou várias vezes a história da concepção da canção e aos poucos, ao longo dos anos, construiu a narrativa de que foi um gesto solidário com a luta dos afro-americanos.
Vale a pena reproduzir na íntegra aqui a resposta de Katie e Smith, em entrevista exclusiva ao Estadão: “Lutamos com essas questões no livro, por isso não é um simples ‘sim’ ou ‘não’. As narrativas atuais de McCartney sobre Blackbird o posicionam como um ator dos direitos civis durante a década de 1960, mas ele não estava envolvido no movimento naquela época. Ao longo dos anos, no entanto, McCartney usou Blackbird como meio para abordar os acontecimentos atuais, como também discutimos no livro”.
Independentemente das origens da música durante a década de 1960, McCartney usa suas histórias atuais sobre ‘Blackbird’ para sinalizar sua solidariedade com #BlackLivesMatter [”Vidas Negras Importam”] nos EUA no século 21.
E completam: “Só recentemente, em seu livro As Letras [960 pgs, Ed. Belas Letras, R$ 749,90], McCartney conectou Blackbird à história de Liverpool como porto de escravos. No verbete “Blackbird”, ele reúne muitas histórias relacionadas a raça que contou sobre a música ao longo dos anos”.
“Ainda assim, isto é complicado: embora as ligações de Liverpool ao comércio de escravos não tenham servido de inspiração para Blackbird, a referência de McCartney ilumina uma importante verdade histórica sobre a associação da cidade com a escravatura e o comércio de escravos”.
O ‘tropo’ dos ‘Africanos Voadores’
O livro é um bem-vindo produto da aplicação de critérios de pesquisa acadêmicos à música. A musicologia viveu tempo demais engessada apenas na música de concerto. Nas últimas décadas, um sofisticado pacote de conceitos e ferramentas vem sendo essencial para novos olhares para as músicas populares. Por exemplo, Katie e Smith usam “Voo Transatlântico” a partir do “tropo” dos “Africanos Voadores”.
Simplificando terrivelmente, tropo é um conceito guarda-chuva que nos faz enxergar de modo inovador fatos e criações aparentemente isolados. Eles explicam: “‘Africanos Voadores’ é um ‘tropo’ que os estudiosos negros teorizaram para falar sobre folclore, tanto histórias quanto canções, apresentando a fuga libertadora dos negros escravizados nas Américas”.
“Este folclore também inclui referências a pássaros, especialmente pássaros de cor preta, e é influenciado pelo folclore africano. As teorias sobre o tropo dos Africanos Voadores, juntamente com outras teorias do Atlântico Negro e do voo Afro-Atlântico, influenciaram nosso conceito de ‘voo transatlântico’. ‘Voo transatlântico’ é uma frase que usamos para falar sobre a triangulação do diálogo musical e artístico entre artistas da Europa, das Américas e da África”.
Pode-se dizer que Blackbird foi reinventada por artistas negros afro-americanos? Eles o configuraram como um espelho de sua condição no Novo Mundo? “Artistas negros, nos EUA, nas Caraíbas e noutros lugares, interpretaram a canção de McCartney de uma forma centrada na negritude, juntamente com questões de gênero, sexualidade e envolvimento político com os direitos civis”.
“Por exemplo, Bettye LaVette canta Blackbird assumindo a perspectiva de primeira pessoa, transformando a música em um hino por sua perseverança de décadas como cantora. Sugerimos que Blackbird é uma música ‘vazia’ porque pode ser usada de diferentes maneiras dependendo de quem a canta. Esta disponibilidade simbólica significa que a canção também é muito ‘rica’: a ampla aplicabilidade da metáfora é a razão pela qual ela tem sido regravada por tantos artistas negros, como muitos deles nos revelaram em entrevistas para o livro”.
A certa altura da entrevista ao Estadão, Katie e Smith falam sobre as parcerias de McCartney com Stevie Wonder (Ebony and Ivory, 1982) e com Michael Jackson (Say, Say, Say, 1983). Seria uma intenção consciente do cantor de continuar surfando em algo que pode ser chamado de “integração racial romanticamente concebida”, para fácil consumo pelo público em geral?
“Não”, dizem, enfáticos. “O seu ‘romantismo pós-racial’, como o chamamos numa publicação anterior, é uma parte do espírito artístico mais amplo de McCartney, que é ensolarado e positivo”.
Playlist
Abaixo, uma playlist que confirma a capacidade de Blackbird de propiciar performances diferentes e a cada momento encaixar-se admiravelmente, como no recente #BlackLivesMatter. Talvez porque nenhum outro animal como o pássaro em seu voo é capaz de representar o conceito, sentimento e emoção de ser livre. E no caso de Blackbird, a cor de suas penas pretas também sugere sofrimento, pressão e repressão.
Esta amplitude de “usos” que a canção permite pode ser comprovada nas performances abaixo:
- Paul McCartney Throughout the Years em 3′41: 1968, 1973, 1976, 1991, 2002, 2004, 2005, 2018, and 2022
- Billy Preston (1972):
- Bobby McFerrin (2008):
- Brad Mehldau (2015):
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