Em suas canções, Paulo Ricardo soube analisar o Brasil como poucos artistas foram capazes. Ele deixou claro que ‘nesse país é o dinheiro que manda’ (em Alvorada Voraz) e que ‘temos que exorcizar nas urnas os vampiros sanguessugas dos palácios em Brasília’ (em Made In Brazil) – letras que ressoam junto a diferentes gerações e retratam o sentimento de indignação o qual todo brasileiro já nutriu.
A obra do cantor e compositor carioca, fundador da banda RPM, ganha nova roupagem no show Voz, Violão & Rock’n’roll, que volta a São Paulo nesta sexta, 6, em duas sessões esgotadas no Blue Note. No show, Paulo Ricardo interpreta seus principais sucessos, como Olhar 43, e covers, como Imagine e Pro Dia Nascer Feliz, em formato mais despojado.
Em entrevista ao Estadão, por videoconferência, o músico de 62 anos falou sobre o espetáculo acústico e lembrou a regravação do hino de John Lennon, que lhe proporcionou um encontro com Yoko Ono, viúva do eterno beatle. Ele também comentou a participação no 50º especial de fim de ano de Roberto Carlos, gravado no Allianz Parque, no qual se apresentou ao lado do Rei com Frejat e João Barone em um medley de canções da Jovem Guarda.
A voz do hit Vida Real, música tema do Big Brother Brasil, ainda opinou sobre a importância cultural do reality show da Globo e discorreu sobre passagens importantes da história do RPM, desde o impacto do álbum Rádio Pirata Ao Vivo (1986) até o imbróglio judicial entre ele e o guitarrista Fernando Deluqui envolvendo o uso do nome do grupo.
Por motivos de compreensão, clareza e espaço, a entrevista abaixo foi editada e condensada.
Como tem sido adaptar suas canções para esse formato acústico e se apresentar em locais intimistas?
Tenho uma história muito intensa com esse espetáculo porque eu relutei muito em fazê-lo. Na pandemia, fui forçado, na medida em que eu não podia estar com os músicos, muito menos com o público, a reler as minhas canções no violão. Surgiu, então, a vontade de colocar aquilo dentro de um conceito interessante, de voz e violão. Encontramos um universo sônico de referências para que aquelas canções renascessem para mim e não fossem apenas versões mais pobres, mas sim releituras completamente diferentes. Isso ficou perfeito para os teatros menores e foi tão divertido que nós resolvemos gravar o álbum Voz, Violão & Rock’n’roll (2023). Então, esse show foi uma espécie de necessidade. Também atribuo essa minha demora em abraçar o formato acústico porque eu comecei como baixista. Toco um violão básico para compor e tal. Sempre tive excelentes guitarristas me acompanhando. Eu tinha um certo medo de encarar um show completo com violão. Mas, aos poucos, tive que superar isso e fui começando a gostar.
No show você interpreta ‘Imagine’, versão autorizada pela Yoko Ono. Você fez uma entrevista muito bonita com ela no ‘Fantástico’. O que lembra daquele encontro?
Foi tipo de conto de fadas. Surgiu com um convite do Mariozinho Rocha, que era o diretor da [gravadora] Som Livre, e que estava interessado em uma versão de Imagine para a abertura da nova novela Estrela-Guia. Ele me disse que tinha pedido autorização para a Yoko e ela não havia recusado de imediato, mas pediu para ouvir a versão. Então, havia essa situação de gravar a música sabendo do risco dela não autorizar. Mas eu disse que faria com prazer, pois sou beatlemaníaco. Para nossa surpresa, a Yoko autorizou. A música foi a número 1 em todo o Brasil. Fizemos um belo clipe e naquele momento, o Fantástico já estava limitando o número de clipes exibidos. Havia uma política de vincular os clipes a algum fato jornalístico. Eu disse: ‘então, que tal se eu entrevistasse a Yoko?’. E a Yoko topou. Eu estava muito nervoso, não consegui dormir, fiquei andando sozinho por Nova York pensando, repassando as perguntas. Mas ela foi super simpática. Ela tem realmente um carisma, uma aura, essa preocupação em ser gentil. E me perguntou sobre música brasileira, comentou que o Sean Lennon [seu filho] adora Mutantes. Foi uma coisa surreal. O que me ajudou foi o fato de ter sido jornalista. Eu fiz jornalismo na USP. Desde então em nenhum show meu eu deixei de tocar Imagine.
No fim de novembro, você fez uma participação no Especial do Roberto Carlos, que ainda vai ao ar. Como foi o processo de ensaio? Ficou satisfeito com o resultado?
Tudo foi difícil, mas a maior dificuldade não foi estar em contato direto com o Roberto, na medida em que é ele quem dá a palavra final sobre tudo. O medley é uma coisa complicada, porque os andamentos são diferentes, e o Roberto pediu tons diferentes, então nós tínhamos que encontrar maneiras de montar isso e ficar uma coisa coerente. Primeiro ensaiamos no estúdio do Frejat, no Rio, e depois no estúdio do Roberto. Ele adorou, mas disse que nós precisávamos cantar. Eu e o Frejat dividimos um verso, tudo foi aprovado e tal. Então, teve o ensaio geral, dois dias antes da gravação, no próprio Allianz. Chegamos lá e na hora o Roberto diz: ‘acho que vocês estão cantando pouco, vocês têm que cantar mais’. Todo mundo sabe que o Roberto é uma pessoa muito perfeccionista, e não sei por que ele não teve essa ideia em cima da hora. Estávamos bem nervosos, porque é uma sensação muito única, você está completamente fora da sua zona de conforto. E, graças a Deus, deu tudo certo. O Roberto esqueceu uma coisa ou outra, acabou cantando em momentos que deveríamos cantar, mas são coisas normais que se resolvem na pós-produção. Eu posso realmente comparar esse momento no Allianz ao encontro com a Yoko. É surreal para nós, que crescemos ouvindo Roberto, de repente ter uma banda e o vocalista é Roberto Carlos. Nunca imaginei que isso pudesse acontecer.
Na música ‘Herói Made In Brazil’, você fala de um país dividido, rico e doente. É uma letra muito incisiva. O Brasil de 2024 te decepciona?
Não, muito pelo contrário. Somos uma democracia em processo de amadurecimento. Realmente, há muita coisa precária. Mas as instituições mostraram-se muito fortes. Não há outra maneira de amadurecer sem viver e errar. Acho que houve uma grande frustração com aquela sequência de governos do PT que fez com que o pêndulo oscilasse naturalmente, como deve ser em democracias, para a direita. Mas começamos a questionar as regras do jogo. E isso é perigoso, porque traz uma grande insegurança, num momento em que você vê várias ditaduras de direita surgindo pelo mundo (...) Eu ouvi essa frase: ‘poxa, pela primeira vez em nossa história, o brasileiro médio sabe o nome de todos os juízes do Supremo, mas não sabe a escalação da Seleção Brasileira’ – isso é bom. A política do dia a dia é uma questão pequena, mesquinha. Muita gente está na política apenas para ganhar dinheiro. Mas acho que há um excesso de violência, conflitos entre familiares, muito ódio nas redes sociais. Olhe o debate para prefeito de SP, no qual você espera propostas para trazer um pouco de ordem ao caos urbano dessa metrópole, e lá estão eles, atirando a cadeira um na cabeça do outro, com ofensas pessoais, muito baixo nível, e isso é lamentável. Não tenho a menor pretensão de apontar caminhos, mas a autocrítica é sempre bem-vinda em tudo na vida.
‘Rádio Pirata Ao Vivo’, do RPM, é um dos discos mais emblemáticos dos anos 80. Foi difícil captar a energia do palco e transportá-la para esse disco?
Na verdade, nós fomos obrigados a lançar esse álbum pelo público. Na turnê de shows, praticamente todos os dias, cada cidade gravava a sua própria versão, e começava a incluir na programação das rádios locais. Pouco depois, a gravadora nos chamou e disse: ‘London, London está em primeiro lugar em todo o Brasil, só que não há um disco, não há um cassete, não há nada que as pessoas possam comprar’. Então, tivemos que gravar um disco ao vivo. Nós tivemos todos os recursos, através da produção, como o uso de lasers, uma coisa caríssima. Então, foi muito fácil. Aquela gritaria toda é essencial. Não é um álbum ao vivo qualquer, é um registro de um momento na história do pop rock nacional, feito para registrar aquela histeria que estava acontecendo conosco, aquela beatlemania brasileira.
Acha que o imbróglio judicial do RPM se arrastou mais do que deveria? Foi um desgaste desnecessário para todos os envolvidos?
Sim, exatamente isso. Nós tínhamos combinado de dar uma parada, simples, uma coisa normal após uma longa turnê. Determinamos um dia que seria o último show, em março de 2017, em um cruzeiro. Terminou o show, o Fernando [Deluqui] foi até a minha cabine, e disse: ‘olha, nós conversamos, decidimos não parar, vamos continuar sem você'. Falei: ‘a viagem foi tensa, vamos chegar em São Paulo e conversamos sobre isso, é um assunto complicado’. Só que nunca ninguém me procurou, e eles já entraram com uma ação, para me impedir de cantar as minhas próprias músicas, o que é uma coisa bizarra, porque ninguém pode ser proibido de cantar nada. Você precisa de autorização para regravar uma canção, não para cantar. Mas a ação foi rolando, e nesse processo, o P.A. [Paulo Pagni, baterista] faleceu, depois o Schiavon [Luiz, tecladista e compositor] faleceu. E finalmente a juíza disse que nós tínhamos um documento protocolado e que só poderíamos usar o nome RPM se fossem os quatro membros da formação original. Então, resolvemos nossa questão, mas foi um desgaste terrível, desnecessário, uma lavação de roupa suja em público, que foi deprimente, constrangedor.
As gerações mais jovens te conhecem mais por causa do ‘BBB’ do que pelo RPM. Você assiste ao ‘BBB’? Acha que o programa agrega algo útil ao Brasil?
Eu sou o responsável pelo tema há 25 anos. Sendo que há 10 anos eu renovo esse tema. Então, eu tenho uma ligação familiar com isso. Eu sou parte daquilo. Eu não tenho uma visão de fora. Eu não assisto ao programa assiduamente, pois tenho uma agenda de shows. Mas eu sempre acompanho, porque eventualmente eu vou estar lá fazendo um show, como já fiz várias vezes. Como qualquer brasileiro, eu acompanho os desdobramentos, as polêmicas e as questões que ele levanta. É um fenômeno cultural o fato que ele tenha sobrevivido 25 anos. Essa sacada de despertar o voyeur em nós. E aqui no Brasil, ele foi acompanhando algumas mudanças da sociedade. São discussões que o mundo inteiro tem sobre racismo, homofobia. Isso é saudável. Se você não gosta, assista a TV Cultura. Ninguém é obrigado a assistir ao BBB. Agora, estamos comemorando 25 anos e decidimos regravar a versão clássica, mais rock, com aquela nostalgia. Vai ter um relançamento de arrepiar quem vem assistindo o programa há muitos anos.
Paulo Ricardo - Voz, Violão & Rock’n’roll
- Data: 6 de dezembro de 2024
- Onde: Blue Note São Paulo - Av. Paulista, 2073
- Ingressos: esgotados
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