Análise: Vídeo reconstrói imagem fiel de Elis Regina, mas distorce mensagem de Belchior

Comercial que juntou Elis e Maria Rita lança debate: o uso da inteligência artificial precisa ter uma sensibilidade artística, para além da técnica?

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Foto do author Danilo Casaletti
Atualização:

Elis Regina (1945-1982) e Maria Rita estão cantando juntas, finalmente. Uma marca de automóveis lançou na noite desta segunda-feira, 3 de julho, uma campanha que junta as vozes de mãe e filha em um dos clássicos da música popular brasileira, Como Nossos Pais, de autoria de Belchior.

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O filme, de cerca de 2 minutos, emocionou fãs e artistas nas redes sociais. Nele, Maria Rita, que dirige um veículo elétrico de último modelo emparelha com a mãe, que dirige um veículo da mesma marca a motor, muito popular nos anos 1970 e 1980. Esse é o mote para que elas travem o dueto.

A propaganda é muito bem feita. É assinada pelo diretor Dulcídio Cadeira, premiado em Cannes pelo comercial Balões, feito para a MTV Brasil, em 2011. Cadeira já havia emocionado o público - e conseguido muitos compartilhamentos - anteriormente com um comercial protagonizado por Fernanda Montenegro para um banco, uma linda mensagem de fim de ano.

A cantora Elis Regina em sua casa, na Serra da Cantareira, em foto de 1980 Foto: L.Gevaerd/Estadão

O filme que junta Elis e Maria Rita chama atenção pelo fato de ter utilizado a inteligência artificial (IA) para criar Elis no volante do veículo. Uma deepfake. É preciso que isso fique claro: não foi a voz de Elis que foi manejada por IA. Elis gravou Como Nossos Pais em 1975. Foi este fonograma que foi usado, com a adição da voz de Maria Rita e novo acompanhamento instrumental.

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Guardada a emoção, há algo no comercial a ser analisado: ele subverte - e, tudo bem, a publicidade é craque nisso - a mensagem da canção de Belchior. Como Nossos Pais fala de um conflito de gerações, em plena ditadura militar. Questiona a acomodação e a repetição de comportamentos em uma sociedade que parecia conformada com os rumos do país. “Ainda somos os mesmo e vivemos como nossos pais”, diz o principal verso da canção, repetido por algumas vezes.

Elis lançou Como Nossos Pais no show Falso Brilhante, no final de 1975, antes mesmo de gravá-la em disco. No espetáculo, quando entoava o verso final da letra de Belchior, exatamente o verso ‘Ainda somos os mesmo e vivemo como nossos pais’, apontava para trás, sem se virar, e chamava a atenção para uma meia dúzia de bonecos criados pelo cenógrafo Naum Alves de Souza para o cenário.

Eram bonecos com feições tristes. Meros espectadores da vida. Algo como “as pessoas na sala de jantar estão ocupadas em nascer e morrer”, cantada antes pelos Mutantes , uma parábola da política pão e circo. Criação de Gilberto Gil e Caetano Veloso batizada de Panis Et Circenses.

Na propaganda, o grito final da gravação original de Elis, em ‘pais’, é diluído. A mensagem de Belchior a força, talvez tenha faltado tempo. E tempo é dinheiro. Certa vez, o musicólogo Zuza Homem de Mello (1933-2020) afirmou que esse grito de Elis - essa era a intenção dela - carregava justamente o conflito de uma geração inteira. Não procure coerência musical no comercial. E essa nem é a intenção da peça, obviamente.

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Já no comercial que junta Elis e Maria Rita, ‘ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais’ soa como uma convergência de gerações: meus pais e eu gostamos de carro. Antes, a motor. Agora, elétrico - e a indústria automobilística está a todo vapor, mirando os consumidores das chamadas SUV ‘s. Em São Paulo, o novo Plano Diretor quer autorizar que os condomínios possam construir mais vagas de garagem. Onde vamos parar, literalmente?

Vale lembrar que Elis adorava dirigir. Em um de seus especiais produzidos para a TV Globo, em 1971, ela aparece guiando habilidosamente um conversível na Avenida Niemeyer, no Rio de Janeiro. Nos anos 1970, quando se mudou para a Serra da Cantareira, em São Paulo, comprou um jipe para levar e buscar os filhos na escola.

O comercial com Como Nosso Pais funde e confunde vários assuntos: a emoção genuína de uma geração que ansiava por ouvir Maria Rita cantando com Elis (em 2012, a cantora fez a turnê Redescobrir com o repertório da mãe), o uso da IA - de novo, a voz da Elis não foi recriada por meio dessa tecnologia - e desvirtuação de uma canção emblemática da música brasileira.

Um último detalhe: inicialmente, o dueto entre Elis e Maria Rita estava previsto para ser lançado nas plataformas digitais, na íntegra. Por ora, isso não acontecerá. Ele ficará restrito à propaganda.

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Ainda sobre Elis

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Para além disso, com menos pretensão comercial, mas sem habilidade da tecnologia, o perfil no Instagram Analisando: Elis Regina, um dos mais ativos sobre a memória da cantora, publicou, também na noite desta segunda-feira, uma gravação no estilo fan-made que cria, por meio da IA, uma gravação inédita de Elis.

Trata-se da canção Nos Bailes da Vida. A composição de Milton Nascimento e Fernando Brant estava na lista das que a cantora pretendia gravar no disco que começaria a produzir uma semana depois de sua morte, em janeiro de 1982.

Embora careça do apuro técnico, o que sobra no comercial da montadora - em alguns trechos, há erro de pronúncia e problemas de afinação - ela também, em um primeiro momento, causa espanto e comove. Para onde a IA pode levar o debate da recriação de vozes de cantores que já morreram? E quem pode fazer isso? Fãs ou gravadoras? A sensibilidade artística precisa ser preservada? Essa discussão está apenas no início.

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