A soprano Martina Serafin recebe os últimos ajustes na maquiagem nos camarins do Teatro Municipal de São Paulo. O olhar se perde por um instante, enquanto tenta explicar a música do compositor Giacomo Puccini. Ela então interrompe a si mesma, como se enfim houvesse encontrado a resposta certa. “A grande questão é que é tudo tão forte, uma emoção tão arrebatadora, que se você não toma cuidado, acaba se deixando levar por ela no palco e não consegue cantar. Em alguns momentos, é difícil.”
Pouco depois, em uma conversa no quinto andar do Municipal, onde fica a cúpula utilizada para ensaios, é a cineasta Carla Camurati quem reflete sobre a obra do compositor. “Eu penso em algumas coisas que ele escreveu, a ária da Madame Butterfly...” Os olhos se enchem de lágrimas, e ela faz um breve silêncio, entremeado por um sorriso. “É tão lindo, e trágico, eu fico destruída só de lembrar.”
Camurati assina a direção e Martina está no elenco de uma produção da ópera La Fanciulla del West, que estreia nesta sexta-feira no Teatro Municipal. No mesmo palco, em agosto, será apresentada, em versão de concerto, outra ópera de Puccini: Tosca. E, em outubro, a orquestra GRU Sinfônica promove uma nova montagem de Gianni Schicchi, dentro da programação do II Festival de Ópera de Guarulhos.
Nos palcos de ópera, Puccini é uma presença mais do que constante. Na lista de cinco óperas mais encenadas dos últimos vinte anos em todo o mundo, compilada pelo site Operabase, ele é o único a aparecer com duas obras, Tosca e La Bohème. No Brasil, o site Base Ópera Brasil dá conta de 47 produções de óperas do compositor desde 2001.
Mesmo fora dos teatros, sua música não soa estranha:
- A ária Nessun Dorma, da ópera Turandot, foi cantada na véspera da final da Copa do Mundo de 1990 por Luciano Pavarotti e acabou virando música tema de transmissões de jogos pela BBC (além de sua gravação se converter no disco de óperas mais vendido da história).
- No cinema, está na trilha de filmes tão distintos quanto O espelho tem duas faces, com Barbra Streisand, e Missão Impossível: Nação Secreta.
- Em 007: Quantum of Solace, uma apresentação de Tosca é o pano de fundo para uma cena de perseguição.
- Trechos de Madame Butterfly rondam a história vivida por Glenn Close e Michael Douglas em Atração Fatal.
- As árias do compositor não são também estranhas à cultura pop. Aretha Franklin cantou Nessun Dorma durante a cerimônia do Grammy em 1998.
- A mesma peça ganhou versão para guitarra no disco Emotion & Commotion, de Jeff Beck.
- Já O mio babbino caro, da ópera Gianni Schicchi, abriu os shows da turnê A Head Full of Dreams, do Coldplay.
- Isso depois de aparecer em desenhos como Snoopy ou na trilha de séries como Gotham e Buffy: A Caçadora de Vampiros.
- Até mesmo os Simpsons já prestaram sua reverência a Puccini no episódio em que Homer vira tenor e canta a ópera La Bohème.
Precursor do cinema
Da comédia ao drama, o que torna a música de Puccini tão atraente? Para a história da ópera, foi um compositor fundamental. “Ele é a grande síntese das escolas do século 19, aliando a felicidade melódica da ópera italiana, à qual ele pertencia, ao refinamento orquestral da ópera alemã”, explica o crítico e escritor Irineu Franco Perpetuo.
“Suas melodias são extremamente impactantes, sedutoras, envolventes, estabelecem uma fácil identificação com o público, que se aproxima naturalmente das personagens”, concorda o maestro Emiliano Patarra, diretor da GRU Sinfônica e diretor musical da produção de Gianni Schicchi que será encenada em Guarulhos.
Essas melodias, porém, não estão sozinhas: são parte de uma dramaturgia que soa ainda moderna. “Puccini tem um domínio do tempo dramático que faz dele uma espécie de precursor do cinema. Ele é contemporâneo do nascimento do cinema e talvez seja o mais cinematográfico dos compositores de ópera”, diz Perpetuo. E essa relação é particularmente significativa em La Fanciulla del West, ópera ambientada no oeste americano durante a corrida do ouro.
É o primeiro western-spaghetti, e Puccini neste caso seria uma fusão de Sergio Leone e Ennio Morricone
Irineu Franco Perpetuo, crítico e escritor
Em sua produção para o Municipal, Camurati trabalha justamente com essa ideia. “Tanto Puccini quanto esse universo dos westerns estão presentes no imaginário do público, e eu procurei respeitar esse ambiente na produção”, explica a diretora. “A dramaturgia, o sento teatral, era muito importante para ele. Eu tenho certeza que Puccini seria hoje um diretor de teatro, de cinema, e isso é um desafio quando você coloca sua obra no palco, pois o ritmo da ação é contínuo, não tem interrupções.”
Ambientes sonoros
Puccini escreveu óperas sobre os mais diferentes temas, criando cenas marcantes:
- Em Tosca, um chefe de polícia exige uma noite de sexo da cantora Tosca em troca da liberdade de seu amante Cavaradossi.
- Il Tabarro narra um triângulo amoroso que termina em morte.
- Suor Angelica tem uma das árias mais belas e doloridas do autor, em que uma mãe que se recolheu em um convento recebe a notícia da morte do filho que foi obrigada a abandonar.
- La bohème acompanha a vida de um grupo de artistas e boêmios na Paris do século 19.
- Gianni Schicchi é baseada em um episódio da Divina Comédia de Dante.
- Manon Lescaut é a história do amor que condena Manon e Des Grieux à morte.
- Turandot tem como cenário a China antiga.
- Em Madame Butterfly, o Japão é pano de fundo para a história trágica da gueixa que se apaixona por um soldado americano durante a guerra e resolve se matar ao ser abandonada.
É impressionante a habilidade dele de tratar de temas tão diferentes, de criar ambientes musicais únicos, que se adaptam perfeitamente às histórias que estão sendo narradas. Todo e qualquer assunto parece funcionar nas mãos de Puccini
Emiliano Patarra, diretor da GRU Sinfônica
Ainda assim, há questões comuns particularmente importantes em suas óperas. Uma delas, central, tem a ver com as personagens femininas, pelas quais o compositor tinha especial simpatia – o que um de seus biógrafos, Mosco Carner, explica por meio da relação do autor com a mãe, a mulher e as amantes que, em um saboroso pesadelo psicanalítico, ele tentou recriar por meio da personalidade de suas personagens.
“As mulheres de Puccini são diferentes entre si, mas há nelas sempre alguma força. Minnie, na Fanciulla del West, é uma mulher que cuida dos outros, lê a Bíblia para os mineiros, e ao mesmo tempo não tem medo de empunhar uma arma para defender aquele que ama”, diz Martina Serafin. Camurati concorda. “Qual o espaço desse feminino naquela sociedade, naquele contexto? Essas são questões que permanecem, com as quais estamos lidando ainda hoje”, diz a diretora.
Mas se Puccini aborda tudo isso, ressalta Martina, é em um idioma muito particular e próprio, que tem a ver com a intensidade da emoção – e não com ideias preconcebidas. “Eu canto diversos compositores, mas Puccini é uma paixão especial. Eu choro, eu rio, todas as emoções se misturam depois de uma apresentação. Com Puccini, não há outra maneira a não ser a entrega total do cantor. É o mínimo que ele exige de nós.”
Veja 5 passagens célebres das óperas de Puccini...
Vissi D’Arte
No segundo ato da Tosca, o barão Scarpia, chefe de polícia, conversa com a cantora Floria Tosca enquanto na sala ao lado seu amante, o pintor Cavaradossi, é torturado. A certa altura, ele exige dela que conte onde está escondido o revolucionário Angelotti. Ela se recusa, ele ameaça matar Cavaradossi. Desesperada, Tosca clama a Deus: vivi apenas para a arte e para o senhor, por que então me pune dessa forma?
Che gelida manina
No inverno rigoroso parisiense, o poeta Rodolfo tenta escrever um artigo de jornal, mas é interrompido pela chegada de uma jovem vizinha, Mimi, que pede a ele que acenda sua vela. Na hora de ir embora, ela perde a chave de casa. Os dois se agacham para procurar e, pronto, as mãos se tocam. “Que mãozinha gelada”, diz Rodolfo, “me permita que eu a esquente”. A delicadeza e a quase inocência (será que a chave sumiu mesmo?) da cena do primeiro ato de La bohème é um dos momentos mais inspirados da obra de Puccini.
Nessun Dorma
Calaf apaixona-se pela princesa chinesa Turandot e vence o desafio: responde a três enigmas e com isso terá direito a se casar com ela. Mas a princesa não quer se casar. E Calaf devolve a ela o desafio: se durante o período de uma noite ela adivinhar seu nome, estará livre do compromisso. A princesa então determina que ninguém durma até que o nome do guerreiro seja descoberto. “Ao amanhecer, vencerei”, canta o tenor ao final da ária, que se tornou central no repertório dos maiores tenores da história.
Un bel dì vedremo
A ópera é Madame Butterfly. A gueixa Cio-Cio San apaixona-se pelo soldado americano Pinkerton, mas ele volta para os Estados Unidos. Ele não tem intenção alguma de retornar, mas a jovem segue acreditando em seu amor. Na ária, ela imagina o belo dia em que o navio de seu amado vai aparecer no horizonte. É uma das passagens mais bonitas e, ao mesmo tempo, trágica das óperas de Puccini.
O mio babbino caro
Não é “bambino”, é “babbino mesmo”, ou “paizinho”. A ária pertence à ópera Gianni Schicchi, comédia escrita pelo compositor a partir de Dante. Lauretta está apaixonada pelo jovem Rinuccio e pede ao pai que ajude a família do rapaz. “Oh meu paizinho querido. Eu amo-o, ele é tão belo; quero ir até Porta Vermelha. Para comprar o anel!”
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Suor Angelica
Suor Angelica faz parte de uma trilogia, Il Trittico, composta também por Gianni Schicchi e Il Tabarro. São obras curtas, em que a força do teatro de Puccini aparece ainda mais condensada. E sua capacidade de emocionar o público é marcante. Na ária, Angelica, que teve um filho fora do casamento e foi obrigada pela família a entrar para o convento, reage à notícia da morte da criança. “Sem a sua mãe, filhinho, você morreu. (...) E morreu sem saber quanto te amava a sua mãe”. Preparem-se: é dilacerante.
Il Tabarro
A mais verista das obras de Puccini. O termo verismo se refere ao realismo que, na ópera, significou histórias mais simples, sombrias, cruas. Em Il Tabarro, o estivador Luigi se apaixona por Giorgetta, esposa de Michele, dono de uma balsa atracada nas margens do Rio Sena, em Paris. Traição, vingança e morte em menos de uma hora de música.
Manon Lescaut
Manon Lescaut narra a história de Manon, moça que guiada pelo irmão e pelo desejo por uma vida de luxos, casa-se com um aristocrata francês. Mas ela não consegue esquecer o jovem poeta Des Grieux, assim como ele se mantém perdidamente apaixonado por ela. O tema já havia sido transformado em ópera pelo compositor Jules Massenet, mas Puccini insistiu em fazer sua versão: “Massenet escreveu Manon como um francês, com seus minuetos e danças. Eu a escreverei como um italiano”. O último ato, em que o casal se encontra exilado e à beira da morte após serem despachados para os Estados Unidos, dá uma boa pista do que o compositor queria dizer com isso.
La Fanciulla del West
A ópera não tem passagens particularmente famosas – grandes árias, por exemplo –, com exceção da pequena intervenção do tenor em Ch’ella mi creda, que não dura muito mais do que dois minutos de música. Mas isso não é um problema: na verdade, é o contrário. Puccini experimenta na ópera uma forma contínua de composição, com um ritmo teatral fluente, à qual os números individuais se submetem. Nesse sentido, a cena entre Minnie e Dick Johnson, no segundo ato, é imperdível – assim como seu diálogo em seguida com o xerife e vilão da história Jack Rance.
La Rondine
A ópera é uma ode ao amor romântico – e, por isso mesmo, à impossibilidade de se vivenciar o amor. Magda é casada com Rambaldo, mas se apaixona por Ruggero, com quem foge. Com o tempo, os dois passam a ter problemas financeiros e o rapaz escreve à mãe pedindo autorização para se casar com a moça. Quando a consegue, porém, é tarde demais: Magda resolve retornar à sua antiga vida. Antes disso, aproveite o lirismo da cena final do segundo ato, quando Ruggero e Magda resolvem ficar juntos.
SERVIÇO DE LA FANCIULLA DEL WEST
- Datas: 14/07, 15/07, 16/07, 18/07, 19/07, 21/07 e 22/07
- Ingressos de R $12 a R$ 158
- Teatro Municipal de São Paulo.
- Vendas: https://theatromunicipal.org.br/pt-br/
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