Quem seria o produtor capaz de convencer Ella Fiztgerald e Sarah Vaughan a irem a um estúdio, depois de décadas de sucesso, para gravar ‘meros’ scats em um faixa coletiva de um disco seu? Quincy Jones, óbvio. Para um exemplo mais popular: Foi Quincy quem colocou mais de quatro dezenas de artistas pop em um estúdio madrugada adentro em 1985 para gravar uma canção para arrecador fundos para o combate à fome na África.
Ok. Madonna, grande nome do pop em ascensão na década de 1980, não participou de We Are The World. No entanto, isso diz mais sobre o temperamento da diva pop - e de sua rusga com Cindy Lauper - do que qualquer erro de Quincy em convencer as duas a se entenderem e gravarem juntas ao lado de nomes como Ray Charles, Stevie Wonder, Michael Jackson, Lionel Ritchie, Diana Ross, entre outros.
Foi na gravação de We Are The World, aliás, que Quincy, conta a história, teria pregado um cartaz na porta do estúdio onde era possível ler “deixe seu ego do lado de fora”. O resultado foi histórico.
Nascido no sul de Chicago durante o período da grande Depressão econômica nos Estados Unidos, Quincy, que morreu nesta segunda-feira, 4, aos 91 anos. foi menino de rua salvo pela música. Dizia que era impossível viver sem duas coisas: água e música. Sua música percorreu caminhos impensáveis em mais de 70 anos de carreira. Foi músico, compositor, maestro, arranjador e empresário.
Desde cedo esteve ao lado dos melhores: o pianista Ray Charles e o trompetista Dizzy Gillespie para começar. De saída, Quincy, que também era trompetista, atuou como Miles Davis e fez arranjos para Ella e Sarah - está aí o motivo delas aceitarem participar da faixa We B. Dooinit, do álbum Back on The Block, de 1989 - e atuou com Frank Sinatra.
Além de estar no lugar certo, com as pessoas certas - e contar com a ajuda da deusa música - havia muito de trabalho também. No ótimo documentário Quincy, disponível na Netflix, o produtor, sempre muito bem humorado, diz algo que serve também com um bom conselho: “deixe papel e caneta por perto, pois se você não estiver acordado, Deus levará a ideia até Mancini”. Mancini era Henry Mancini (1924-1994), músico americano, compositor de trilhas para o cinema, outro gênio que atuou na mesma época de Quincy.
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As novas gerações, sempre tão ruidosas nas redes sociais quando um artista pop da atualidade lança algo novo, não podem mensurar o impacto que uma das obras-primas de Quincy causou: o álbum Thriller, lançado por Michael Jackson em novembro de 1982. Calcula-se que o disco já tenha vendido mais de 130 milhões de cópias ao longo de quatro décadas.
Foi como se Quincy, naquele momento, colocasse em um caldeirão elementos do rock, R& B, funk e contemporâneos para produzir uma grande explosão capaz de zerar a música e fazer surgir um novo pop. Nunca houve nada como Thriller. Nem como Michael - desculpa, Bruno Mars.
Quincy flertou com a música brasileira. Ivan Lins conta ouviu da boca do produtor que ele e Michael haviam separado a composição Novo Tempo, dele e Vítor Martins, para entrar em Thriller. De acordo com Lins, problemas com um contrato, no qual os compositores teriam que transferir quase a totalidade dos diretos autorais para o produtor, impediram que a ideia fosse adiante. Anteriormente, Quincy já havia gravado a canção Velas da dupla.
Gostava da cantora Simone - levou a baiana para se apresentar com ele no tradicional Montreux Jazz Festival, na Suíça. Tinha uma relação de amizade com Milton Nascimento e com o produtor Marco Mazzola. Paulinho da Costa, um dos músicos brasileiro de maior destaque nos Estados Unidos, esteve ao seu lado em gravações.
Quincy seguiu ativo durante quase todo tempo em que esteve por aqui. Se não estava produzindo, servia como guia de qualidade para tudo o que foi feito depois que ele apareceu na música. Por meio da Quincy Jones Listen Up Foundation, trabalhou pelos direitos humanos, contra o racismo e construiu casas para desabrigados na África.
Ganhou mais 28 Grammys - foi indicado cerca de 80 vezes - , dois Oscar honorários e um Emmy. Quando o chamavam de “lenda”, brincava que, dessa forma, o faziam sentir “velho”. Mr. Jones, pedimos licença para, neste momento, chamá-lo de lenda. The Legend. Jamais haverá outro igual.
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